terça-feira, 19 de junho de 2007

Visões Periféricas?


por Bruno Moreno


Um evento no Rio de Janeiro foi pioneiro e mereceu toda a atenção da sociedade civil. Mas passou desapercebido. O Festival Visões Periféricas acabou essa semana e foi organizado pela Ong Observatório de Favelas. Mostrou a produção audiovisual dos locais em desvantagem social, com películas de cineastas oriundos de escolas e oficinas populares de comunicação e cinema de todo o país. A idéia era inverter um fato que "comemora" mais de 100 anos : mostrar o olhar da periferia sobre a própria realidade.


Acontece que pouca gente viu e se importou. Acontece que esse movimento vem ocorrendo lentamente, em algumas luzes pontuais, discutíveis e polêmicas, mas que não apresenta um destino para se comemorar . Falcão - Meninos do Tráfico, pode ser considerado o ápice e o início de um filme quase puramente da favela. Deu um baque, que durou o tempo do fogo de duas palhas. Seguiu-se uma moda global disso. Cidade dos Homens, Central da Periferia, as spice girls pobres Antônias. Independente de qualquer crítica, foi a primeira vez que essa presença maçiça dos locais ditos como "informais" apareceu como parte do cotidiano da cidade, não só no samba, mas em formas estruturais, urbanísticas e de cultura. Em formas de imagens. Mas parou por aí. O que se seguiu, e paralelamente a isso, foi que a periferia foi mostrada com festa demais. Diretores ganharam dinheiro com os pobres (Cidade Baixa, Cidade de Deus, Amarelo Manga), Cacá Diegues teve sua carreira ressuscitada ao se tornar o paladino cinematográfico do pobre, acadêmicos adotaram cada um a sua favela nas universidades públicas e particulares. Mais: ter um projeto audiovisual virou coqueluche orçamentária nas Ongs e quase uma exigência dos patrocinadores dessas organizações. Críticas à parte, ainda era um festival para se ver.
A idéia de se contar a própria história é magnifíca. Ajuda na transformação da estigmatização histórica que a periferia sofre. Desde tempos do Cinema Novo (Sim!), Rio 40graus e Pixotes da vida. É a revolução midiática que deveria ter acontecido, mas ainda é absorvida pelos que detém o poder de transmissão. E transmitem como querem. E esses não moram em barracos. Além disso, o novos possuidores das câmeras estão se subjugando aos ditames da elite branca (sim!) cinematográfica. Digo objetivamente que a forma de contar essa realidade é manipulável, assim como manipulável são as aprovações dos patrocínios. É preciso cuidado no jogo do toma lá da cá para não se perder os fins, já que os meios desviaram-se a princípio.


O Festival Visões Periféricas teve um grande valor. Mostrou que as coisas estão sendo feitas. Em quantidade e qualidade. Pena, novamente, que tenha servido para se afagar a cabeça do fudido e para a senhora madama dizer "que bonitinho o que ele fez". Valeu para marcar a existência de algo que está sendo sutilmente redefinida em favor das mesmas pessoas que fabricaram as visões errôneas e estereotipadas de que querem fugir as lentes atuais da periferia. Mesmo que quase ninguém saiba, tenha visto ou veja a realidade social que se afigurou há mais de 100 anos. E que ainda não foi bem contada.

quarta-feira, 13 de junho de 2007

A SOLIDÃO DA RUA GUAPENI




Por Henry Galsky


A placa de um azul um tanto desgastado anuncia em letras brancas contrastantes: Biblioteca Popular. Mas poucos são os passantes que levantam a cabeça para lê-la. Imersos em realidade cotidiana, o anúncio se ergue solitário e silencioso, como estátua de bronze, na esquina da Rua Guapeni, quase em frente ao que já foi a Mesbla.

Por si só, a rua diverge da confusão da Conde de Bonfim, principal e famosa via com que a Guapeni se encontra na altura da placa. Como se esta não existisse, os pedestres seguem em direção às atrações óbvias da rua principal e sequer desviam o olhar. É como se o supermercado, a academia, o hortifruti, a loja de móveis, o curso pré-vestibular e o transporte público ordenassem "sempre em frente!".

Poucos são os que se aventuram a entrar na Guapeni. A esta hora da manhã, o trabalho não pode esperar e ela está, mais uma vez, vazia. O guardador de carros é o solitário imperador e por isso mesmo olha com certa estranheza quem passa. Filetes de grama crescem entre os paralelepípedos. Pequenos prédios, de não mais de três andares, formam a maior parte das construções.

Há casas que se transformaram em comércio, como o curso de inglês que não pretende concorrer com as grandes empresas do setor, a creche com suas paredes coloridas infantilmente, consultórios de dentistas e algumas botiques para noivas. Tais lojas já recebem clientes, na ansiedade do matrimônio. Afinal, o amor não pode esperar. Costureiras caminham de um lado a outro, à procura da melhor medida, do melhor decote, do melhor tom para a noite mais importante das vidas dessas moças.

A chuva da noite anterior e o céu negro insistente que cobre a montanha ao fundo, contribuem para dar à Guapeni a impressão de região serrana. O silêncio permite ouvir o passo apressado da mãe que acompanha a filha adolescente ao curso de inglês. Tudo isso às margens da Conde de Bonfim.

As casas da rua guardam certa semelhança. Muros baixos protegem a entrada. Grandes varandas adornadas por arcos e pilastras de pedra. Piso vermelho. Em algumas varandas, a presença confortável de cadeiras de balanço de madeira ou ferro. Uma casa azul-piscina é uma das últimas construções da rua, quase em frente à biblioteca. Num cartaz preso à parede, a saudação: "bem-vindo ao mundo dos golfinhos". Os animais sorriem – se é que isso é possível. "Essências florais, minerais, marinhas...". As reticências insinuam que há essências de outros materiais.

Uma mulher abre a porta, provocando com isso reverberação da cortina sonora. Sou convidado a entrar. Ela crê que estou interessado em arteterapia, na oficina de "alimento vivo" ou na palestra sobre florais do nordeste. No interior da residência, tapetes artesanais, uma secretária e música que soa como Beto Guedes, 14 Bis, ou alguém do Clube da Esquina. Agradeço o convite e por educação acabo me inscrevendo na palestra.

O portão se fecha com um estampido metálico. Do outro lado da rua, vasos de plantas cobrem a fachada de mais uma casa sustentada por pilastras de pedra. A porta está aberta e convida a entrar. A cortiça do lado de fora está coberta com cópias de capas de livros. São os lançamentos do mês disponíveis na Biblioteca Popular da Tijuca. Ou melhor, Biblioteca Popular Marques Rebelo, em homenagem ao escritor Edi Dias da Cruz. Pode soar estranho, mas é possível explicar a aparente confusão. Marques Rebelo era o pseudônimo do escritor. Ironicamente, tornou-se mais famoso que seu nome real. O grande sucesso do autor foi A Estrela Sobe, livro lançado em 1939 que narra a ascensão de uma jovem suburbana ao sucesso como cantora de rádio. Se escrito hoje, ela se tornaria, provavelmente, uma participante do Big Brother e posaria para a Playboy.

Na cortiça, além das novas aquisições, os cursos oferecidos. A gama de opções é enorme: psicanálise, espanhol, francês, violão, matemática, reiki. Do lado de dentro da biblioteca, silêncio. Logo na entrada, um segurança particular oferece um grande livro de capa preta aos visitantes que desejarem assiná-lo.

Os cerca de 15 mil livros estão divididos por áreas de interesse. Há oito prateleiras dedicadas somente à literatura norte-americana. O cheiro de livro é forte e a luz, intermitente. No salão de leitura, ventiladores de pás de ferro e o recém-adquirido ar-condicionado deixam o clima agradável aos 14 leitores. Eles estão absolutamente imersos em seus livros e jornais.

Um pequeno corredor leva aos fundos da biblioteca. Lá estão a administração, a sala infantil e a audioteca, que já conta com mais de 300 fitas para deficientes visuais. O corredor está decorado com fotos de todos os presidentes da República. Todos mesmo. Campos Sales, Rodrigues Alves, Nilo Peçanha...

Josefa Padrão Moutinho, a gerente da biblioteca, explica tratar-se de uma exposição itinerante, uma parceria com o Museu da República.

Josefa é a administradora geral e responde à Coordenadoria de Bibliotecas da Prefeitura do Rio. Seus óculos redondos, saia longa e meia-idade, colaboram para que se enquadre no estereótipo de professora primária que povoa o imaginário coletivo. Mas ela é mais do que isso. Além de professora, é bibliotecária e assistente social. Sua mesa está coberta de pastas, livros e papéis, muitos deles recortes de jornais velhos. Uma máquina de escrever ao lado é a armadilha para um flashback sonolento aos tempos de escola.

Desde 2004 na biblioteca, Josefa é a supervisora dos 11 funcionários – sendo três deles terceirizados – que trabalham no local. Tenta se esquivar, quando a organização da biblioteca é elogiada. "Tudo o que foi feito é com o aval da diretoria", diz, após pequena pausa e a tentativa de esconder o sorriso.

Ela conta que todos os dias recebe mais de 120 leitores. Nos últimos tempos, os livros mais requisitados têm sido O Código da Vinci e Harry Potter. "Houve um caso de um advogado que leu todo o Harry Potter aqui", conta.

"Muita gente vem estudar para os concursos públicos. Fora isso, muitos de nossos freqüentadores não moram na Tijuca, apenas trabalham no bairro", explica.

Josefa também gosta de ler. Apesar disso, pensa alguns segundos antes de confessar que o blockbuster O Código da Vinci foi sua última leitura. "Mas gosto muito de Descartes, Platão, filosofia e literatura brasileira", emenda rapidamente.

Sentado diante do computador que provê acesso gratuito à internet, o analista de processos Pedro Leonardo Albuquerque dos Santos, de 28 anos, freqüenta a biblioteca nos finais de semana – sim, ela abre aos sábados e domingos. "Antes de trabalhar em meu novo emprego, vinha aqui todos os dias. Gosto de acessar a internet, ler jornais e livros. O último que levei pra casa foi a Constituição porque precisei dela para um concurso", diz.

Antes de sairmos, pedimos a Pedro que pose para uma foto, ao lado de um livro, de forma a ilustrar a matéria. Entre os 15 mil volumes disponíveis, ele rapidamente escolhe o best seller de auto-ajuda Quem Mexeu no Meu Queijo. "Esse livro é muito bom", garante sorrindo ao lado da capa azul escura.

terça-feira, 12 de junho de 2007

Filosofando com ponta dos pés

Por Fânia Rodrigues

É maldição do homem gênio que na própria medida em que ele aparece aos outros, grande e admirável, estes lhe pareçam pequenos e mesquinhos. Contudo tem que calar toda a vida essa opinião, como eles calam a sua. Entretanto é condenado a viver numa ilha deserta, onde não encontra ninguém que se lhe assemelhe, e sem outros habitantes senão macacos e papagaios” é o que fala Friedrich Nietzsche.

Esse é um dos grandes dilemas da humanidade. Porque quanto mais conhece, mais sensível, humano se torna o homem e conseqüentemente mais vulneráveis as dores do mundo, já que as palavras, os gestos, as atitudes fazem mais sentido quando se conhece mais profundamente a razão, a história e a mente humana.

Segundo a psicanálise o homem vive em função dos seus prazeres, desse modo o homem é escravo dos seus desejos. Ele vive para suprir as necessidades que ele mesmo criou, e antes de satisfazê-las cria novos desejos. Tudo para fugir da dor, que tanto o apavora.

No entanto, o mais interessante é que, quem dá a medida do prazer é exatamente a dor. Por isso é que Nietzsche defende a dor como os estado positivo do homem, pois segundo ele só na dor o homem se sente profundamente. Pois alegria não é reflexiva, ela externa, portanto ela se dá no estado da ausência humana.

E defende que o homem só se conhece profundamente na dor e segundo ele “o conhecimento é tristeza: aqueles que mais sabem são os que mais profundamente devem lamentar a fatal verdade, a árvore do conhecimento não é a da vida”.

Segundo Schopenhauer, se nossa existência fosse ilimitada e ausente de dores, talvez nenhum homem tivesse tido a idéia de perguntar a si próprio porque existe o mundo e se encontra constituído de justamente desta maneira. Tudo se compreenderia por si mesmo.

Para Schopenhauer, se todos os desejos, apenas formados, fossem imediatamente realizados, com que se preencheria a vida humana, em que se empregaria o tempo? Coloque esta raça num país de fadas, onde todos os desejos são realizados o mais facilmente possível, os homens morreriam de tédio ou iriam enforcarem-se, outros matarem-se, e causarem-se mutuamente mais sofrimento do que a natureza agora lhes impõe.

Portanto a dor e solidão são maus necessários, pois como o homem poderia se dar conta que a alegria existe se não tivesse a dor para medi-la. E a solidão, por sua vez é um estado natural do humano. É a ausência do outro, e principalmente algo que acontece dentro, e não fora das pessoas, ou seja, fugir da solidão é como fugir de si mesmo, do que pensa, do que sente e do que é.

Sobre a eterna juventude

Há uma frase do ator americano James Dean que ilustra bem a psicologia da juventude. Ela diz: “viver cada dia como se fosse o último e sonhar como se fosse imortal”. O duque francês La Rochefoucauld já dizia “A juventude é uma longa intoxicação: ela é a razão em estado febril”.
Essa juventude que vai da adolescência até os 20 e poucos anos, é incrivelmente imediatista. Mas temos que inventar atividades prazerosas que possam ir além do sexo, drogas e rock’n’roll. Caso contrário, corremos o risco de vivermos uma vida que será apenas de uma nostalgia melancólica de um tempo que já passou.

O quero dizer é que o prazer não vem apenas do corpo, assim como a espiritualidade não vem apenas da religião. Ela pode vir do prazer proporcionado pelas artes plásticas, pela literatura, da música, da ciência e da filosofia. São atividades que não dependem de atributos corporais para ser exercidas. São prazeres proporcionados pela mente e não pelo corpo, já que este último rapidamente envelhece.

sábado, 9 de junho de 2007

Comentários

Contra o que se propõe qualquer blog, esse que vos fala não abria espaço para comentários. Mas neguim ficou azucrinando nossos ouvidos e agora está aí. O milho está aí, mas é pra comer!

Mundo Todo

quarta-feira, 6 de junho de 2007

35 anos de Clube da Esquina




As datas comemorativas devem ter um porquê. Memórias heróicas, exemplos, totens, redefinição de caminhos, paradigmas. Há 35 anos, pelo menos, existe um fato que o brasil (com minúscula por merecimento) deveria lembrar constantemente em 2007. Onde colhemos informações sobre namoros de celebridades, como emagrecer 20 kilos em um dia tomando sopa de alfafa, como capturar seu homem na cama, incestuosos artigos opinativos anti-chavez, anti-nada, deveriam estar fotos-sequências, entrevistas, áudios, revelações , todo o arsenal hipertextual da Internet em favor de um dos mais revolucionários grupos culturais da história do país.

Em 1972, Milton Nascimento, Lô Borges, Beto Guedes, Flávio Venturini, Wagner Tiso, Robertinho Silva, Fernando Brant, Ronaldo Bastos, Vermelho, Márcio Borges, Toninho Horta, entre outros, lançavam o disco Clube da Esquina. O nome era uma referência ao que não eram. Não eram grupo, seita, organização. Nada disso. Representavam a pura e desavergonhada arte do estar junto, de forma caótica, nem sempre programada, em uma tarde qualquer de Minas. Se juntaram, cantaram e revelaram suas genialidades à base de batida de limão.

Esse pequeno e desinteressante texto não é para falarmos da história deles, nem para escrever um recadinho post-it à memória coletiva. O que queremos abordar é que , fora alguns blogs de trincheira, sites alternativos, muito bem escondidos no infinito de informações do Googleworld, quase ninguém está comentando essa marca. Nem a grandeza dela. O Clube da Esquina é revolucionário, ponto. Não teve o mesmo apelo do Tropicalismo, os mesmos rebolados de Ney, nem a harmonia de música e estilo de vida carioca praiana da Bossa Nova. Não teve impacto imagético ou político. Em uma época de contestações à ditadura , em pleno centro da Família, Tradição e Propriedade mineiras se afundaram no homem, na liberdade e na arte. Suas letras falavam disso e suas músicas eram um híbrido nunca visto antes (e até hoje) entre o rock progressivo, sons andinos, brasilidade e Beatles. O Clube foi um rio que passou e não foi notado. Nem o é atualmente. Poucos jovens o conhecem e, quando escutam algumas músicas , de autores separadamente como o Milton, não o associam como um "movimento" único, embora heterogêneo, de pesquisa musical riquíssima, de busca por uma sonoridade mesclada, por letras de cunho humanista e libertário.

Reforçando: o Clube da Esquina trouxe um novo tipo de som e letra à música mundial, mas quase ninguém se importa. Talvez tenham sido considerados pouco brasileiros nos arranjos com influencia andina, no tom latinoamericano das milongas, numa atitude política apolítica como em San Vicente (Estava em san vicente / As mulheres e os homens / Coração americano / Com sabor de vidro e corte). Ou na juventude filosófica ao falar de liberdade e devir sem engrossarem a voz roqueira, como em “Nada será como Antes” (Eu já to com o pé nessa estrada / Qualquer dia a gente se vê / Sei que nada será como antes / amanhã). Quem sabe pelo amor ingênuo, mas com arranjo imprevisível e inconstante, do piano majestoso de Wagner Tiso em “Um Girassol da cor do seu cabelo” (Se eu cantar não chore não / É só poesia / Eu só preciso ter você / Por mais um dia / Ainda gosto de dançar / Bom dia / Como vai você?). Não gostaram, de repente, da dor de cotovelo do samba qualquercoisa , onde Milton sofre um falsete impossível de se atingir por vozes normais , na técnica e no sentimento de “Me deixa em Paz” (Se você não me queria / Não devia me procurar / Não devia me iludir / Nem deixar eu me apaixonar). Ou na genialidade instantânea, da composição mais rápida de Milton e Lô, que desaguou na canção mais linda e ainda instrumental que era Clube da Esquina N.02 (depois ganhou letra à altura de Márcio Borges por “ordem” de Nana Caymmi). Ou na raiva quase quieta de “Trem de Doido”, com direito a solo distorcido, quase desafinado e com um efeito ruidoso de Beto Guedes (Noite azul pedra e chão / Amigos num hotel / Muito além do céu / Nada a temer, nada a conquistar). Motivos não faltaram para a intelectualidade, juventude e mídia nacionais.

O Clube da Esquina é livre demais. É preciso ser mais humano para ouvi-los. Quem sabe nas próximas gerações. Os sonhos nasceram há 35 anos, não envelheceram e ainda podem ser tudo o que queriam ser. Eles já nos convidaram, que o país saiba aceitar: Venha até a esquina / Você não conhece o futuro / Que eu tenho nas mãos. Parabéns, Clube da Esquina.

domingo, 3 de junho de 2007

HEROES: o balanço da primeira temporada


Depois de 23 episódios e muita falação sobre a série-fenômeno da temporada, terminou (pelo menos para os gringos e para os downloadeadores apressados) a primeira temporada de Heroes. Ou o "Volume Um", como o criador Tim Kring prefere chamar. (Aliás, também já começou o "Volume Dois"; volto a isso mais adiante.)

Agora que acabou a temporada, é hora da reflexão. Heroes apareceu na mídia como algo inovador, com indícios de que seria uma revolução no mundinho dos enlatados norte-americanos. Não foi pra tanto, mas a série ressaltou o aspecto extra-TV de uma forma jamais vista.

Além da TV

Antes mesmo de começar as filmagens, os produtores da série fizeram direitinho a lição de casa. Heroes é (assumidamente) conseqüência direta do sucesso de séries como Lost e 24 Horas, em que o espectador precisa acompanhar todos os episódios desde o início. Pela presença de Jeph Loeb e Greg Beeman na equipe, é possível considerar que Heroes também é filhote de séries como Smallville e Supernatural, com seu uso de efeitos especiais de forma rotineira (algo que afeta drasticamente a rotina de produção). Em entrevistas, a equipe sempre ressaltou que os erros e acertos dessas séries guiaram muitas de suas decisões.

Outro aspecto muito interessante é a relação dos criadores com a imprensa. Tim Kring deu ótimas entrevistas antes e depois de momentos-chave da série (após a revelação da identidade do verdadeiro pai da Claire, por exemplo), sempre informando/revelando detalhes (sem spoilers) que trazem mais significado à mitologia da série e mostram que tudo tem um motivo (uma lição aprendida com a falta de informações sobre Lost). O ComicBookResources, um dos principais sites de notícias de HQ nos EUA, fez uma coluna semanal chamada "Behind the Eclipse", apresentando perguntas e respostas com dois dos roteiristas (são oito ou nove no total). Ali, além de responder à dúvidas sobre o episódio da semana anterior, os roteiristas colocavam desafios aos leitores, como descobrir o nome do Bennet (quem viu o episódio final já sabe!) e a importância do número 9 na mitologia da série.

A própria equipe de produção se esforçou muito para criar atrativos além da série em si no site oficial. A opção de oferecer os episódios para download para o público foi vista como um suicídio econômico por muitos. Por que alguém reservaria um horário pra ver na TV algo que poderia ser visto a qualquer momento depois de algumas horas? A estratégia era permitir que o espectador novo pudesse saber o que aconteceu antes e que o fã pudesse achar um novo sentido em antigos episódios a partir de fatos revelados nos novos, algo que anteriormente só era permitido em reprises ou no DVD. Como atrativo para o futuro DVD foram prometidos muitos extras, inclusive a versão original do piloto de 72 minutos com uma trama parcialmente diferente.

Ainda no site oficial, foi disponibilizado o blog do Hiro, justamente o personagem mais nerd/geek que se tornou rapidamente o favorito dos fãs. Desde o início da série, o site oficial também oferece HQs online, que não apenas revelam detalhes sobre certos personagens ou sobre momentos não-mostrados na série (como a fuga da prisão do DL), mas também foram o principal palco da personagem Hana Gitelman/Wireless. A moça israelense, a única a ter um "codenome" (ou seria um "nickname"?) além do vilão Sylar, pouco apareceu na série, mas teve sua vida contada nas HQs online do início ao fim (o que combina perfeitamente com a natureza dos poderes dela).

Outra ótima iniciativa foi a criação do Heroes 360 Experience, com falsos sites que criam um "universo expandido" da série. A lista inclui o perfil do Myspace da Claire e da Hana, o blog da Hana, o site sobre o livro escrito por Chandra Suresh, Activating Evolution, o site oficial do Corinthian Casino, o site da empresa Primatech Paper, o site de campanha de Nathan Petrelli e o site da Sociedade (ou Instituto, dependendo da tradução) Yamagato. Mesmo com um episódio por semana, esses "extras" mantiveram os fãs mais hardcore ocupados, mantendo o interesse na série nos diversos fóruns online.

A história

Quando Heroes começou, ninguém sabia pra onde aquilo iria rumar (talvez nem os roteiristas). Um plágio de X-Men, ou de Watchmen, ou um outro seriado cheio de superfreaks ou mistérios sem respostas. Essas eram algumas opções. E, realmente, demorou um certo tempo, mas acredito que Heroes conseguiu achar o seu tom ideal por volta do episódio 5, justamente o que contém a agora famosa mensagem do Hiro do futuro para Peter.

Uma das declarações dadas por Kring em entrevistas dizia respeito à escolha dos poderes dos personagens e dava pistas da real natureza da série. Segundo o criador, os poderes não derivavam da trama, mas do personagem. Dando o exemplo de DL, um personagem que estava preso por um crime que não cometeu, Kring pensou "o que ele faria se pudesse simplesmente sair andando através das paredes da prisão?". Então não foi algo do tipo "como esse poder ajuda a deter a bomba?", mas "que poder combina (mesmo que de forma irônica) com esse personagem?". Isso ajudou a definir Heroes como um drama, não uma série de ação. E isso faz toda a diferença na hora de construir expectativas sobre a série.

Outro ponto revelado por Kring: a série não teria "temporadas", e sim "volumes", para ressaltar a semelhança com uma saga literária. Para o criador, a mitologia desse mundo é mais importante que as tramas e ações passageiras, de forma que o primeiro volume não se chama "Genesis" à toa, ele realmente é apenas o início de uma história muito maior (já se falou num planejamento de 5 anos). O segundo volume, Generations, promete justamente mostrar a história de outras gerações de personagens com "habilidades especiais", inclusive os pais e filhos daqueles que vimos na primeira. Uma conseqüência desse "pensamento macro" é que se a história percorre décadas ou séculos (Kring falou em "milênios", mas isso deve ser exagero dele!), então é natural vermos a morte de personagens "principais". A princípio isso gera um clima estranho e um pouco desagradável de "ninguém está seguro", mas depois acaba dando aquele gostinho de acompanhar uma saga familiar por diversas gerações (e a família Petrelli é forte candidata a fio condutor).

Além dessas explicações off-screen, os próprios personagens deixavam claro que não haveria uma equipe de super-heróis de roupa colorida combatendo o mal (apesar da geração anterior ter feito uma tentativa nessa linha, o que provavelmente será mostrado em "Generations"). Mesmo assim, muita gente esperava algo diferente, o que nos leva ao polêmico episódio 23.

O episódio final

O final da temporada na realidade são os 3 últimos episódios. Cada um corresponde a um ato da narrativa clássica do cinema, o que explica porque no episódio 21 fica aquela sensação de que "não aconteceu nada", afinal aquele é claramente o primeiro ato, em que só se posicionam os personagens e se apresenta a situação. Na verdade, os 3 episódios poderiam ser vistos em seqüência como um único filme de duas horas.

Dito isso, vamos ao terceiro ato, o capítulo final, episódio 23. Chamei de polêmico ali em cima não por algum elemento controverso nele mesmo, mas pela reação do público e da crítica na internet no dia seguinte à sua exibição. Inicialmente, não entendi o motivo da decepção, já que adorei o episódio (apesar de algumas falhas visíveis, é verdade). Acabei buscando a explicação em dois filmes.

Corpo Fechado, a péssima tradução de Unbreakable, é o filme mais incompreendido de M. Night Shayamalan. O filme é uma grande homenagem aos quadrinhos de super-herói disfarçado de "suspense de ficção científica", na falta de um termo melhor. Mas o grande público (e alguns críticos!) quiseram ver nele um "suspense/terror sobrenatural", tendo como referência óbvia o filme anterior de Shayamalan, Sexto Sentido. Nada mostrado em Unbreakable, entretanto, justificava essa interpretação. Ou, falando de modo mais simples, as pessoas estavam procurando cabelo em ovo.

X-Men 3 é uma bosta! Lamento se você que está lendo gostou do filme, mas isso não está em discussão. Para o meu argumento aqui, X-Men 3 é um filme ruim a priori. Em relação aos filmes anteriores, a obra simplesmente apresenta outro clima, outro mundo, outra visão do conceito de "X-Men". Mas o fato é, muita gente (incluindo leitores de quadrinhos) adorou o filme. Quando perguntei o motivo, as respostas eram sempre variações de 3 pontos: o filme "diverte", "tem muita porrada" e "tem muitos efeitos especiais". Ou seja, o grau de pipoquice supera a necessidade de coerência da obra (seja com a direção, com o roteiro ou com os filmes anteriores).

Esses dois fenômenos contribuíram para a má recepção do season finale. A "Síndrome de Unbreakable" fez os espectadores imaginarem um final de natureza diferente do que a própria série indicava. A equipe de criação até fez uma episódio de som e fúria (o episódio 20), inclusive com referencia a "Dias de um Futuro Esquecido", mas foi visivelmente um tipo de "what if", com um ritmo bem diferente do resto da série.

Já a "Síndrome de X-Men 3" afetou a expectativa do público, que queria que os Superamiguinhos se unissem contra o supervilão malvado, resultando em muita porrada, diversão, efeitos especiais e frases de efeito. Ainda bem que a síndrome não atingiu os roteiristas de Heroes (o mesmo não pode ser dito de Homem-Aranha 3, infelizmente). Se numa série como Smallville essa resolução até seria bem-vinda, o mesmo não pode ser dito sobre Heroes, um drama centrado nos personagens.

Muito foi dito sobre as possíveis maneiras de evitar a explosão além da que foi mostrada. Entretanto, em Heroes os roteiristas às vezes abrem mão do caminho mais lógico/simples/eficaz se isso render uma cena dramaticamente mais interessante. Isso geralmente resulta em um ato surpreendente, mas que ainda assim parece inevitável depois que acontece (algo que também acontece em Unbreakable). O final do "Volume Um", em muitos momentos, fecha caminhos abertos no primeiro episódio, caminhos que pareciam incertos e que agora parecem que eram óbvios desde o início. É impossível tudo o que foi dito sobre/por Nathan e tudo o que ele fez durante a série não ser visto de outra forma agora.

Aliás, as diversas leituras de cada cena conforme ganhamos mais informações sobre os personagens são sensacionais. Isso e o fato de ser uma obra que entrega o que prometeu no início (ao contrário de outras que só enrolam) fazem de Heroes uma das melhores experiências seriadas da cultura pop atualmente (mesmo competindo com HQs). Já estou guardando dinheiro pra quando sair o DVD.

Matéria retirada do blog Área Azul . (Contribuição gentilíssima do querido e amado JP Cruz))

minimodomundo@gmail.com

sábado, 2 de junho de 2007

Bobeou, tá na Net!




Referências ao conceito de “Big Brother” já foram feitas aos milhares. Esse panótico voyeurismo dos nossos dias, tendo como exemplo máximo o programa televisivo homônimo. Mas parece que isso vai ficar pra trás. O que começou como diversão , uma versão via satélite de “Onde está Wally?” pode estar se transformando na real e irreversível resultado do fim da relação tempo-espaço, do ideal vigilante da maquinaria de Foucault , da morte da privacidade como alguns estudiosos já apontaram com mais profundidade. Sem julgamentos, fellas. Fato é que uma reportagem americana dessa semana mostra isso muito bem.

A californiana Mary Kalin-Casey tomou um susto dia desses. Ao dar uma verificada em seu próprio endereço , usando um dos serviços do Google Map, chamado Street View, viu uma imagem muito próxima da sua casa. Aproximou mais ainda e pôde enxergar nada mais nada menos que a sua gata de estimação no parapeito da janela. “É uma discussão entre tirar fotos publicamente e bisbilhotar onde as pessoas vivem. Daqui a pouco vão mostrar os livros da minha estante.”

Mary Kalin então botou a boca no trombone, deu entrevistas, reclamou em blogs e a discussão tomou vulto nos Eua. O Street View vem nesse conceito interativo onde pode-se tirar fotos dos lugares para que seja colocado no Google Maps, que ainda não tem (ou não quer mostrar) um foco tão próximo assim das coisas. Artistas usam para mostrar suas pinturas em muros. Sites e blogs elegem as melhores fotos. Além disso, grandes empresas fazem esse serviço de captação 360 graus, como a Immersive Media. O Google alega que só permite fotos feitas em locais públicos e que as pessoas que sentirem que a privacidade foi ameaçada podem pedir para excluir as imagens. As empresas dizem que a lei as protege quando os registros são feitos em locais públicos. Algumas outras pessoas falam que esse discurso é exagero da senhora Mary Kalin cujo nome , colocado no mesmo Google por exemplo, mostra muita coisa sobre sua vida (que gerencia apartamentos, que foi editora de um site sobre filmes etc).

Outros exemplos acenderam ainda mais a polêmica. Na mesma semana uma foto de duas meninas tomando banho de sol de biquíni no campus de uma universidade na Califórnia, um homem entrando numa dessas boates eróticas e outro, não-identificado ,comprando revistas pornográficas foram campeões de audiência.

Dê uma olhada na matéria completa: aqui


Por Bruno Moreno

sexta-feira, 1 de junho de 2007

O salvador, o protetor e o político (viagens sobre Deus no hip-hop brasileiro)




O hip hop brasileiro sempre foi polêmico. Da acusação de apologia ao crime, incitação à violência, ao racismo do negro com relação ao branco, passando pela suposta má-qualidade musical até a controversa dualidade ideologia-mercado. Geralmente as afirmativas são baseadas em não-conhecimento: ou do jornalista playboy que deu roupa para a Dona Maria lavar ou do rapper radical, iletrado e contraditório. O fato é que raramente esse gênero musical é tratado com o devido respeito e profundidade nas vias midiáticas. Uma de suas características marcantes, que não se vê falar muito, salvo alguns estudos acadêmicos ininteligíveis e frios, é a presença de “Deus” em suas letras.

Não vou traçar nenhum panorama histórico e social que motiva ou motivou discurso tão recorrente nas linhas hiphopianas. O que me encanta nesse tema é pluralidade de algo supostamente uno. O Deus religioso é indivisível, incolor e inodoro. Nada o toca abaixo ou acima das estrelas. É a idéia que mil religiões completamente diferentes tomam pra si. Muito mais do mesmo.

No hip hop nacional podemos vê-lo de diversas formas. É importante citar, por exemplo, que o maior prêmio do gênero do país (e talvez o maior do mundo), o Hutuz, tem uma categoria dedicada ao melhor rap gospel. No entanto, resolvi dimensionar a questão através da ótica de três nomes apenas: Racionais Mc´s, Mv Bill e Obando. O primeiro é o maior grupo do estilo no país. Viraram lenda na periferia e uma pedra cultural do tamanho do mundo no sapato do chamado “asfalto”. O segundo é uma das maiores figuras públicas brasileiras. Mais visto como paladino na luta contra a desigualdade e invisibilidade sociais. No entanto, um músico igualmente gigantesco, talentoso, cuja refinada qualidade musical ainda vai ser descoberta pelos “plêisson”. Obando é um nome novo e diferente no cenário hip hop. Falam de sangue, do cotidiano e de temas universais de maneira peculiar, com letras criativas e batidas bem boladas. Deus está com os três. E eles o vêem de maneira heterogênea.

Dos Racionais é fundamental olharmos a tão famosa e peremptória obra “Sobrevivendo no Inferno, considerado o mais importante do gênero na história do país. O álbum é conceitual. E usa Deus como conceito. Começa pelo título óbvio. Em referência clara ao gueto, à periferia, temos o “Inferno”. O “Sobrevivendo” sempre interpretei como uma forma de superação amparada em algo, encostada no alguém supra-humano, no que está ao lado e acima. No próprio título do disco temos uma contraposição entre o Bem e o Mal, o Santo e o Coisa-Ruim, Deus e o Diabo, o paraíso e o inferno. Entrando mais no universo sugerido no tapete da porta, vemos as faixas do lado A se harmonizando como um conjunto de orações. A primeira música é “Jorge da Capadócia”, de Jorge Ben, numa versão iluminada, com jeito de capela na igreja, lamento, pré-oração do povo negro. São Jorge, santo guerreiro das adversidades, da proteção e superação contra o “Mal”. Racionais fez a benção e abriu caminho para mostrar a própria alma. A segunda faixa é uma introdução e se chama Gênesis, como o primeiro livro da Bíblia. Seguida da clássica “Capítulo 4, Versículo 3”, cantada de cor por favelados e playboys do Brooklyn ao Morumbi, de Ipanema ao Complexo do Alemão. Aqui encontramos referencias claras ao suposto inferno da periferia como Aqui é bem pior do que você está vendo / Nego aqui não tem dó / É cem por cento veneno. A quarta Mano Brown, vocalista e líder do grupo, diz que está ouvindo alguém chamá-lo, na proximidade da morte, pergunta será que Deus ainda olha por mim? e responde o diabo agora guia meu destino, em contraposição ao que era e ao que agora se torna (um quase-morto por causa do crime). O Diabo guia sua mão para o crime e para morte quando Deus o abandonou. No restante do disco, alternância entre a dura luta diária na periferia e apelos ao Senhor Todo-Poderoso. Na também clássica e conhecida “Mágico de Oz”, Eddie Rock faz um desejo no refrão: Que Deus ouvisse a minha voz e transformasse aqui no Mundo Mágico de Oz (a realidade no sonho, o ruim no romanticamente bom, no etéreo, no paraíso). E também culpa Deus pela chuva na Periferia em “Periferia é Periferia” ( Essa noite chove muito porque Deus chora/// Este lugar é um pesadelo periférico). É a vez e o momento de exemplificar musicalmente o que dizem no título. Ao mesmo tempo (e talvez contradizendo a fortaleza espiritual da religião), acabam dizendo que Deus perdeu a peleja ao descreve-lo chorando. O resto continua. Em Diário do Detento, outra Obra-prima , Mano Brown dá o tom de pessimismo e desespero do inferno das ruas que o levou ao inferno da prisão: Será que Deus ouviu o meu Apelo ?(..) O senhor é meu pastor, perdoe o que seu filho fez, morreu de bruços no salmo 23. Enumerei essas faixas para mostrar o que é claro: a contraposição entre Deus e o Diabo, entre o conforto espiritual e o cotidiano infernal na periferia. O todo-poderoso visto como salvação e , ao mesmo tempo , impotência diante de todo "mal" que existe.

Visão parecida, mas diferente é a d´Obando. Embora fale de tudo em suas músicas, ele é sempre presente. Os títulos dos dois cds são “Bonança” e “Livrai-me do Mal” , por exemplo. Alguns trechos como Meu pai livrai-me do mal / Seja como for olhai por mim até o final / E antes do momento crucial / Que eu veja o traidor abatido pelo próprio punhal são esclarecedores. Em uma pequena entrevista, que um dos integrantes me concedeu, pude perceber que o Deus da salvação perdeu lugar para o Deus da “proteção”. Transcrevo: “Outro dia estávamos falando sobre nosso segundo álbum, e falando exatamente sobre essa importância de deus nas nossas músicas, embora não sejamos um grupo gospel. Do nada apareceu um caveirão. Tinham vários traficantes perto da gente. Ou seja, íamos no bolo, sem ter nada a ver com a história. Acontece que, a menos de 200 metros, os caras passaram direto, não nos viram. Quase impossível. Isso serve de exemplo pra ver como Deus é proteção. Toda hora tem inocente indo pra vala . É muita ruindade. Cara, se não se ligar onde pisa, pode morrer. Se você não souber se o ‘arrego’ ta pago ou não, se um bandido quer matar o outro, enfim, tem que estar antenado. É 24 horas de tensão. Só com proteção mesmo. Todo dia eu saio da favela e peço por proteção. Todo dia eu entro na favela e peço por proteção. E isso está em nossas músicas”. Para os Racionais, Deus se torna um amuleto de salvação e resistência ao inferno. Onde o inferno, que de forma pessimista parece que continuará pra sempre na periferia, é feito pelos próprios homens. Associam-no a uma forma imediata e única de mudança. No entanto, para o Obando ele toma a figura da proteção, simplesmente. Não se coloca nele a “força” para seguir, mas a “condição” para se manter antes de tudo no cotidiano. Não se salva a alma , mas o homem. Não faz suportar a realidade, mas viver nela. Na música “Ta pensando o quê” eles fazem uma associação genial entre essa proteção e o que a motiva, mesclando-os. Mas na rua / nunca estou sozinho / é tipo Deus no radinho / vigiando meu caminho, uma ironia entre os traficantes que vigiam a favela com rádio de comunicação e o escudo, contraditoriamente, que eles acabam representando.

Guiado por Jesus / Tenho minha missão / Guerreiro do inferno / Traficante de informação. Mv (Mensageiro da Verdade, uma junção do menino que ficava pregando “verdades” sociais e o jeito de tais pregações parecido com o de pastores, os mensageiros do evangelho) Bill, nas aberturas de música, em assinaturas e em entrevistas se diz guiado por Jesus. Tem uma tatuagem que fala isso e mais: nos antebraços em letras gigantes “Só Deus Pode Me julgar”. Marca na pele o apreço pelo homem. Admiração e importância que coloca nas próprias músicas. Embora tenha um tom mais político, mais articulado, com conceitos mais concretos de transformação social, ele está lá. E interessantíssimo que percebamos que, ao contrário dos outros dois grupos citados, o Deus billininano, por assim dizer, é quase um retrato socialista, igualitário e humanista de Jesus. É a força divina presente nem para proteção nem para superação, mas como caminho para se estabelecer a igualdade e visibilidade social. O Deus de Bill é como um mártir, que luta contra algo “maior”, que vai na raiz pra modificar e que, dependendo da interpretação, não coloca a favela como o “inferno” ou a comprovação da existência do Mal, e sim o asfalto, a burguesia como principal provedora desse Mal. Podemos ver em “Só Mais um Maluco”: E (o povo) segue a risca os padrões da burguesia / A mesma que assimila a dança com pornografia / Influência minha sobrinha e sua tia / Na frente do espelho imitando a coreografia / Incentivando a brutal pedofilia / Eu creio em deus pai todo poderoso o único que me guia // Ele diz em Junto e Misturado: “Faço da Minha Fé meu combustível / E sei que quem não bota a cara fica invisível” ou em Língua de Tamanduá: Eu sou por Deus / sou por mim, por nós e por mais ninguém.

Racionais usa como força para seguir, superar e se salvar, Obando como proteção para existir e Bill como guia pelo caminho da igualdade social. Ele faz parte integrante do pensamento musical desses artistas, mesmo não sendo rappers gospel. Deus , aqui, não é necessariamente religioso. Mais uma projeção ideológica de algo bem real: a periferia sufocada pela pobreza , pela falta de oportunidade e pela violência. O hip hop (grande parte dele) vem daí. Palavras secas, simples, me parecem ser a única forma de poesia viável em um mundo vigiado, alerta e perigoso. Deus é quase um termo de resgaste da humanidade. Resgaste que parece tão longínquo , tanto que as ações práticas para a melhoria ou trasnformação do local sejam jogadas ao Ser Único e Perfeito. Deus é a explicação sociológica que parte do hip hop usa para se entender , mostrar e entender onde vive . Não quero dizer que na favela só há tristeza e “falta de” (esse é um dos grandes estigmas com relação a ela, como bem vê os sociólogos Licia do Prado Valladares e Jaílson de Souza). Pelo contrário. É tentar mostrar que “Deus” ou a religiosidade aparece por mecanismos além-religiosos, bem mais sofisticados. Ou mais: tão presente em uma visão de mundo que se aproxima do dia-a-dia em oposição a eternidade, que cochicha ns ouvidos fiéis em ruas e não em templos, que é percebido como um só, enquanto é extremamente plural. Um Deus comum, livre e que toca de diversas formas. Sem doutrinas, filosofia, regras e diferenças. Onde busca o que teoricamente fala arduamente a ouvidos surdos: o bem do homem, morador de favela ou não.

Por Bruno Moreno

minimodomundo@gmail.com

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