Por Henry Galsky
A placa de um azul um tanto desgastado anuncia em letras brancas contrastantes: Biblioteca Popular. Mas poucos são os passantes que levantam a cabeça para lê-la. Imersos em realidade cotidiana, o anúncio se ergue solitário e silencioso, como estátua de bronze, na esquina da Rua Guapeni, quase em frente ao que já foi a Mesbla.
Por si só, a rua diverge da confusão da Conde de Bonfim, principal e famosa via com que a Guapeni se encontra na altura da placa. Como se esta não existisse, os pedestres seguem em direção às atrações óbvias da rua principal e sequer desviam o olhar. É como se o supermercado, a academia, o hortifruti, a loja de móveis, o curso pré-vestibular e o transporte público ordenassem "sempre em frente!".
Poucos são os que se aventuram a entrar na Guapeni. A esta hora da manhã, o trabalho não pode esperar e ela está, mais uma vez, vazia. O guardador de carros é o solitário imperador e por isso mesmo olha com certa estranheza quem passa. Filetes de grama crescem entre os paralelepípedos. Pequenos prédios, de não mais de três andares, formam a maior parte das construções.
Há casas que se transformaram em comércio, como o curso de inglês que não pretende concorrer com as grandes empresas do setor, a creche com suas paredes coloridas infantilmente, consultórios de dentistas e algumas botiques para noivas. Tais lojas já recebem clientes, na ansiedade do matrimônio. Afinal, o amor não pode esperar. Costureiras caminham de um lado a outro, à procura da melhor medida, do melhor decote, do melhor tom para a noite mais importante das vidas dessas moças.
A chuva da noite anterior e o céu negro insistente que cobre a montanha ao fundo, contribuem para dar à Guapeni a impressão de região serrana. O silêncio permite ouvir o passo apressado da mãe que acompanha a filha adolescente ao curso de inglês. Tudo isso às margens da Conde de Bonfim.
As casas da rua guardam certa semelhança. Muros baixos protegem a entrada. Grandes varandas adornadas por arcos e pilastras de pedra. Piso vermelho. Em algumas varandas, a presença confortável de cadeiras de balanço de madeira ou ferro. Uma casa azul-piscina é uma das últimas construções da rua, quase em frente à biblioteca. Num cartaz preso à parede, a saudação: "bem-vindo ao mundo dos golfinhos". Os animais sorriem – se é que isso é possível. "Essências florais, minerais, marinhas...". As reticências insinuam que há essências de outros materiais.
Uma mulher abre a porta, provocando com isso reverberação da cortina sonora. Sou convidado a entrar. Ela crê que estou interessado em arteterapia, na oficina de "alimento vivo" ou na palestra sobre florais do nordeste. No interior da residência, tapetes artesanais, uma secretária e música que soa como Beto Guedes, 14 Bis, ou alguém do Clube da Esquina. Agradeço o convite e por educação acabo me inscrevendo na palestra.
O portão se fecha com um estampido metálico. Do outro lado da rua, vasos de plantas cobrem a fachada de mais uma casa sustentada por pilastras de pedra. A porta está aberta e convida a entrar. A cortiça do lado de fora está coberta com cópias de capas de livros. São os lançamentos do mês disponíveis na Biblioteca Popular da Tijuca. Ou melhor, Biblioteca Popular Marques Rebelo, em homenagem ao escritor Edi Dias da Cruz. Pode soar estranho, mas é possível explicar a aparente confusão. Marques Rebelo era o pseudônimo do escritor. Ironicamente, tornou-se mais famoso que seu nome real. O grande sucesso do autor foi A Estrela Sobe, livro lançado em 1939 que narra a ascensão de uma jovem suburbana ao sucesso como cantora de rádio. Se escrito hoje, ela se tornaria, provavelmente, uma participante do Big Brother e posaria para a Playboy.
Na cortiça, além das novas aquisições, os cursos oferecidos. A gama de opções é enorme: psicanálise, espanhol, francês, violão, matemática, reiki. Do lado de dentro da biblioteca, silêncio. Logo na entrada, um segurança particular oferece um grande livro de capa preta aos visitantes que desejarem assiná-lo.
Os cerca de 15 mil livros estão divididos por áreas de interesse. Há oito prateleiras dedicadas somente à literatura norte-americana. O cheiro de livro é forte e a luz, intermitente. No salão de leitura, ventiladores de pás de ferro e o recém-adquirido ar-condicionado deixam o clima agradável aos 14 leitores. Eles estão absolutamente imersos em seus livros e jornais.
Um pequeno corredor leva aos fundos da biblioteca. Lá estão a administração, a sala infantil e a audioteca, que já conta com mais de 300 fitas para deficientes visuais. O corredor está decorado com fotos de todos os presidentes da República. Todos mesmo. Campos Sales, Rodrigues Alves, Nilo Peçanha...
Josefa Padrão Moutinho, a gerente da biblioteca, explica tratar-se de uma exposição itinerante, uma parceria com o Museu da República.
Josefa é a administradora geral e responde à Coordenadoria de Bibliotecas da Prefeitura do Rio. Seus óculos redondos, saia longa e meia-idade, colaboram para que se enquadre no estereótipo de professora primária que povoa o imaginário coletivo. Mas ela é mais do que isso. Além de professora, é bibliotecária e assistente social. Sua mesa está coberta de pastas, livros e papéis, muitos deles recortes de jornais velhos. Uma máquina de escrever ao lado é a armadilha para um flashback sonolento aos tempos de escola.
Desde 2004 na biblioteca, Josefa é a supervisora dos 11 funcionários – sendo três deles terceirizados – que trabalham no local. Tenta se esquivar, quando a organização da biblioteca é elogiada. "Tudo o que foi feito é com o aval da diretoria", diz, após pequena pausa e a tentativa de esconder o sorriso.
Ela conta que todos os dias recebe mais de 120 leitores. Nos últimos tempos, os livros mais requisitados têm sido O Código da Vinci e Harry Potter. "Houve um caso de um advogado que leu todo o Harry Potter aqui", conta.
"Muita gente vem estudar para os concursos públicos. Fora isso, muitos de nossos freqüentadores não moram na Tijuca, apenas trabalham no bairro", explica.
Josefa também gosta de ler. Apesar disso, pensa alguns segundos antes de confessar que o blockbuster O Código da Vinci foi sua última leitura. "Mas gosto muito de Descartes, Platão, filosofia e literatura brasileira", emenda rapidamente.
Sentado diante do computador que provê acesso gratuito à internet, o analista de processos Pedro Leonardo Albuquerque dos Santos, de 28 anos, freqüenta a biblioteca nos finais de semana – sim, ela abre aos sábados e domingos. "Antes de trabalhar em meu novo emprego, vinha aqui todos os dias. Gosto de acessar a internet, ler jornais e livros. O último que levei pra casa foi a Constituição porque precisei dela para um concurso", diz.
Antes de sairmos, pedimos a Pedro que pose para uma foto, ao lado de um livro, de forma a ilustrar a matéria. Entre os 15 mil volumes disponíveis, ele rapidamente escolhe o best seller de auto-ajuda Quem Mexeu no Meu Queijo. "Esse livro é muito bom", garante sorrindo ao lado da capa azul escura.
3 comentários:
Henry Chinasky e sua transbordante paixão pela Tijuca, quase deu vontade de morar nessa rua, hehehe.
No final, quando vc fala da foto, deu a impressão de que foi publicado em alguma mídia de papel. Foi mesmo?
Abraços
Uma delícia a leitura, Henry. Também senti falta da foto do Pedro com o best-seller. Parabéns!
Obrigado pelos comentários, amigos. Infelizmente, ainda não estou com a foto que foi tirada.
Um abraço.
Henry
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