O hip hop brasileiro sempre foi polêmico. Da acusação de apologia ao crime, incitação à violência, ao racismo do negro com relação ao branco, passando pela suposta má-qualidade musical até a controversa dualidade ideologia-mercado. Geralmente as afirmativas são baseadas em não-conhecimento: ou do jornalista playboy que deu roupa para a Dona Maria lavar ou do rapper radical, iletrado e contraditório. O fato é que raramente esse gênero musical é tratado com o devido respeito e profundidade nas vias midiáticas. Uma de suas características marcantes, que não se vê falar muito, salvo alguns estudos acadêmicos ininteligíveis e frios, é a presença de “Deus” em suas letras.
Não vou traçar nenhum panorama histórico e social que motiva ou motivou discurso tão recorrente nas linhas hiphopianas. O que me encanta nesse tema é pluralidade de algo supostamente uno. O Deus religioso é indivisível, incolor e inodoro. Nada o toca abaixo ou acima das estrelas. É a idéia que mil religiões completamente diferentes tomam pra si. Muito mais do mesmo.
No hip hop nacional podemos vê-lo de diversas formas. É importante citar, por exemplo, que o maior prêmio do gênero do país (e talvez o maior do mundo), o Hutuz, tem uma categoria dedicada ao melhor rap gospel. No entanto, resolvi dimensionar a questão através da ótica de três nomes apenas: Racionais Mc´s, Mv Bill e Obando. O primeiro é o maior grupo do estilo no país. Viraram lenda na periferia e uma pedra cultural do tamanho do mundo no sapato do chamado “asfalto”. O segundo é uma das maiores figuras públicas brasileiras. Mais visto como paladino na luta contra a desigualdade e invisibilidade sociais. No entanto, um músico igualmente gigantesco, talentoso, cuja refinada qualidade musical ainda vai ser descoberta pelos “plêisson”. Obando é um nome novo e diferente no cenário hip hop. Falam de sangue, do cotidiano e de temas universais de maneira peculiar, com letras criativas e batidas bem boladas. Deus está com os três. E eles o vêem de maneira heterogênea.
Dos Racionais é fundamental olharmos a tão famosa e peremptória obra “Sobrevivendo no Inferno, considerado o mais importante do gênero na história do país. O álbum é conceitual. E usa Deus como conceito. Começa pelo título óbvio. Em referência clara ao gueto, à periferia, temos o “Inferno”. O “Sobrevivendo” sempre interpretei como uma forma de superação amparada em algo, encostada no alguém supra-humano, no que está ao lado e acima. No próprio título do disco temos uma contraposição entre o Bem e o Mal, o Santo e o Coisa-Ruim, Deus e o Diabo, o paraíso e o inferno. Entrando mais no universo sugerido no tapete da porta, vemos as faixas do lado A se harmonizando como um conjunto de orações. A primeira música é “Jorge da Capadócia”, de Jorge Ben, numa versão iluminada, com jeito de capela na igreja, lamento, pré-oração do povo negro. São Jorge, santo guerreiro das adversidades, da proteção e superação contra o “Mal”. Racionais fez a benção e abriu caminho para mostrar a própria alma. A segunda faixa é uma introdução e se chama Gênesis, como o primeiro livro da Bíblia. Seguida da clássica “Capítulo 4, Versículo 3”, cantada de cor por favelados e playboys do Brooklyn ao Morumbi, de Ipanema ao Complexo do Alemão. Aqui encontramos referencias claras ao suposto inferno da periferia como Aqui é bem pior do que você está vendo / Nego aqui não tem dó / É cem por cento veneno. A quarta Mano Brown, vocalista e líder do grupo, diz que está ouvindo alguém chamá-lo, na proximidade da morte, pergunta será que Deus ainda olha por mim? e responde o diabo agora guia meu destino, em contraposição ao que era e ao que agora se torna (um quase-morto por causa do crime). O Diabo guia sua mão para o crime e para morte quando Deus o abandonou. No restante do disco, alternância entre a dura luta diária na periferia e apelos ao Senhor Todo-Poderoso. Na também clássica e conhecida “Mágico de Oz”, Eddie Rock faz um desejo no refrão: Que Deus ouvisse a minha voz e transformasse aqui no Mundo Mágico de Oz (a realidade no sonho, o ruim no romanticamente bom, no etéreo, no paraíso). E também culpa Deus pela chuva na Periferia em “Periferia é Periferia” ( Essa noite chove muito porque Deus chora/// Este lugar é um pesadelo periférico). É a vez e o momento de exemplificar musicalmente o que dizem no título. Ao mesmo tempo (e talvez contradizendo a fortaleza espiritual da religião), acabam dizendo que Deus perdeu a peleja ao descreve-lo chorando. O resto continua. Em Diário do Detento, outra Obra-prima , Mano Brown dá o tom de pessimismo e desespero do inferno das ruas que o levou ao inferno da prisão: Será que Deus ouviu o meu Apelo ?(..) O senhor é meu pastor, perdoe o que seu filho fez, morreu de bruços no salmo 23. Enumerei essas faixas para mostrar o que é claro: a contraposição entre Deus e o Diabo, entre o conforto espiritual e o cotidiano infernal na periferia. O todo-poderoso visto como salvação e , ao mesmo tempo , impotência diante de todo "mal" que existe.
Visão parecida, mas diferente é a d´Obando. Embora fale de tudo em suas músicas, ele é sempre presente. Os títulos dos dois cds são “Bonança” e “Livrai-me do Mal” , por exemplo. Alguns trechos como Meu pai livrai-me do mal / Seja como for olhai por mim até o final / E antes do momento crucial / Que eu veja o traidor abatido pelo próprio punhal são esclarecedores. Em uma pequena entrevista, que um dos integrantes me concedeu, pude perceber que o Deus da salvação perdeu lugar para o Deus da “proteção”. Transcrevo: “Outro dia estávamos falando sobre nosso segundo álbum, e falando exatamente sobre essa importância de deus nas nossas músicas, embora não sejamos um grupo gospel. Do nada apareceu um caveirão. Tinham vários traficantes perto da gente. Ou seja, íamos no bolo, sem ter nada a ver com a história. Acontece que, a menos de 200 metros, os caras passaram direto, não nos viram. Quase impossível. Isso serve de exemplo pra ver como Deus é proteção. Toda hora tem inocente indo pra vala . É muita ruindade. Cara, se não se ligar onde pisa, pode morrer. Se você não souber se o ‘arrego’ ta pago ou não, se um bandido quer matar o outro, enfim, tem que estar antenado. É 24 horas de tensão. Só com proteção mesmo. Todo dia eu saio da favela e peço por proteção. Todo dia eu entro na favela e peço por proteção. E isso está em nossas músicas”. Para os Racionais, Deus se torna um amuleto de salvação e resistência ao inferno. Onde o inferno, que de forma pessimista parece que continuará pra sempre na periferia, é feito pelos próprios homens. Associam-no a uma forma imediata e única de mudança. No entanto, para o Obando ele toma a figura da proteção, simplesmente. Não se coloca nele a “força” para seguir, mas a “condição” para se manter antes de tudo no cotidiano. Não se salva a alma , mas o homem. Não faz suportar a realidade, mas viver nela. Na música “Ta pensando o quê” eles fazem uma associação genial entre essa proteção e o que a motiva, mesclando-os. Mas na rua / nunca estou sozinho / é tipo Deus no radinho / vigiando meu caminho, uma ironia entre os traficantes que vigiam a favela com rádio de comunicação e o escudo, contraditoriamente, que eles acabam representando.
Guiado por Jesus / Tenho minha missão / Guerreiro do inferno / Traficante de informação. Mv (Mensageiro da Verdade, uma junção do menino que ficava pregando “verdades” sociais e o jeito de tais pregações parecido com o de pastores, os mensageiros do evangelho) Bill, nas aberturas de música, em assinaturas e em entrevistas se diz guiado por Jesus. Tem uma tatuagem que fala isso e mais: nos antebraços em letras gigantes “Só Deus Pode Me julgar”. Marca na pele o apreço pelo homem. Admiração e importância que coloca nas próprias músicas. Embora tenha um tom mais político, mais articulado, com conceitos mais concretos de transformação social, ele está lá. E interessantíssimo que percebamos que, ao contrário dos outros dois grupos citados, o Deus billininano, por assim dizer, é quase um retrato socialista, igualitário e humanista de Jesus. É a força divina presente nem para proteção nem para superação, mas como caminho para se estabelecer a igualdade e visibilidade social. O Deus de Bill é como um mártir, que luta contra algo “maior”, que vai na raiz pra modificar e que, dependendo da interpretação, não coloca a favela como o “inferno” ou a comprovação da existência do Mal, e sim o asfalto, a burguesia como principal provedora desse Mal. Podemos ver em “Só Mais um Maluco”: E (o povo) segue a risca os padrões da burguesia / A mesma que assimila a dança com pornografia / Influência minha sobrinha e sua tia / Na frente do espelho imitando a coreografia / Incentivando a brutal pedofilia / Eu creio em deus pai todo poderoso o único que me guia // Ele diz em Junto e Misturado: “Faço da Minha Fé meu combustível / E sei que quem não bota a cara fica invisível” ou em Língua de Tamanduá: Eu sou por Deus / sou por mim, por nós e por mais ninguém.
Racionais usa como força para seguir, superar e se salvar, Obando como proteção para existir e Bill como guia pelo caminho da igualdade social. Ele faz parte integrante do pensamento musical desses artistas, mesmo não sendo rappers gospel. Deus , aqui, não é necessariamente religioso. Mais uma projeção ideológica de algo bem real: a periferia sufocada pela pobreza , pela falta de oportunidade e pela violência. O hip hop (grande parte dele) vem daí. Palavras secas, simples, me parecem ser a única forma de poesia viável em um mundo vigiado, alerta e perigoso. Deus é quase um termo de resgaste da humanidade. Resgaste que parece tão longínquo , tanto que as ações práticas para a melhoria ou trasnformação do local sejam jogadas ao Ser Único e Perfeito. Deus é a explicação sociológica que parte do hip hop usa para se entender , mostrar e entender onde vive . Não quero dizer que na favela só há tristeza e “falta de” (esse é um dos grandes estigmas com relação a ela, como bem vê os sociólogos Licia do Prado Valladares e Jaílson de Souza). Pelo contrário. É tentar mostrar que “Deus” ou a religiosidade aparece por mecanismos além-religiosos, bem mais sofisticados. Ou mais: tão presente em uma visão de mundo que se aproxima do dia-a-dia em oposição a eternidade, que cochicha ns ouvidos fiéis em ruas e não em templos, que é percebido como um só, enquanto é extremamente plural. Um Deus comum, livre e que toca de diversas formas. Sem doutrinas, filosofia, regras e diferenças. Onde busca o que teoricamente fala arduamente a ouvidos surdos: o bem do homem, morador de favela ou não.
Por Bruno Moreno
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Racionais não têm site
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