domingo, 16 de dezembro de 2007

plágio

Postei antes aqui no blog, assim como o textinho sobre Thriller. O Globo tá copiando minhas homenagens.

Clube da Esquina

Top 10 Argentina

Acho ridículo esses textos bonitinhos e curtinhos de blog. Mas, puta, tenho que fazer um. Parece coisa de mulher. Por isso, e dessa maneira, vou escrever algumas coisas fofas de coisas aqui na Argentina. Tudo pelo Ibope!

1. Sabe aquele galão de água de 5 litros que tem água fria e quente. Aqui tem água fria e fervendo! É para a galera tomar um mate ou um chá. Queimei a boca outro dia achando que ia mornar a água. Olha, que fofinho.

2. Sabe as moedas que sempre queremos jogar fora no Brasil? Pois é, aqui neguinho vende a mãe por moeda. É que o ônibus só aceita essa merda. Nem adianta desenrolar com motorista. Sem moeda, vai à pé, parceiro.

3. As crianças são mini adultos: cabelos com cortes radicais, nextel (pi pí, pi pí), maquiagem e até um ar blazé incipiente. Dá medo.

4. Aqui o cú doce feminino se chama histeriquio. Mas, ao contrário do Brasil, onde o cú doce é só um teatro sem sentido pré-coito, aqui as nenas levam a sério o esporte. Podem amar o maluco, mas vão dificultar a situação até a última ponta. O cara tem que "remar".Por isso os argentinos, embora bem-apessoados, são todos meio manés nesse sentido (ah, e por consequencia, tarados psy que não podem ver mulher na rua). Não fodem, cara. Não fodem.

5. Aqui não há o funk, nem o pagode, nem o forró , nem a lambada, mas existe algo que congrega tudo isso em um ritmo só: a CUMBIA. Se você olhar um prêibói num carrão preto e todo filmado, com som alto. Pode crer que é cumbia. É som de branco, de villero (som de preto, de favelado), pero cuando toca nadie queda parado. Outro dia os semi-bombados da minha academia começaram a rebolar quando tocou cumbia (e acharam super masculino). Cara, é uma coisa meio eletrônica meio reggaetom, meio Calypso, meio Trinere (lembram da trinere? é assim que se escreve?).

6. As refeições não são completas. Quer dizer, para eles são. Para mim, uma carne e um arroz não é refeição. E ficam escandalizados quando eu falo que almoço tem que ter verdura, farofa (ah, intraduzível), feijão, suco (deus, como sinto falta de um suco e de um açaí). Estão em guerra, caralho? Falta comida? Então taca o dedo nessa porra, 02!

7. Em compensação não há nada como as empanadas e o doce de leite daqui. Nada. Se eu pudesse, comia isso todo dia.

8. Brasileiros são amados aqui. Até eu, que sou preto. No entanto (e vou escrever um texto sério sobre isso essa semana), aumenta a xenofobia contra bolivianos, peruanos e paraguaios. A parada é séria. É como a presença nordestina em favelas cariocas. É como a reação edmundiana que os prêis têm para com os paraíbas. Ops.

9. Aqui é o segundo lugar do mundo com mais chinês, além do Japão. Estou andando por Belgrano. De repente me vejo em um cenário do filme Os Aventureiros do Bairro Proibido (clássico da sessão da tarde com Kurt Russel no papel do caminhoneiro Jack Burton). Além de homens que soltam raios azuis pelas mãos , lá você pode encontrar galões , ou melhor, piscinas de até 20 litros de molho shoyu!!!

10. Cachorros. Acho que isso é famoso. Acho que há uma seita secreta que cultua os cães aqui. Ou eles estão comendo o mesmo arroz dos chineses. Porque estão por toda a parte. Vou comprar um queijo, numa rotisserie maneira: tem um labrador pretão na porta olhando pra minha cara. Está sempre ali. Outro dia jurei que ele me disse que o roquefort havia acabado. Vou na imigração. Cara, na imigração! Repartição pública! O que vejo? Um cachorro debaixo das pernas da atendente. Vou cortar o cabelo. Quem está do meu lado quase lendo jornal e falando de mulher e futebol com o barbeiro? Um boxer. E os passeadores já viraram atração turística. São artistas. Acho que deve ter uma faculdade de passeadores de cães aqui. Porque é só com 4 anos de estudo que se aprende a levar 45 bichos na coleira, em harmonia, desviando de carros, bicicletas, pedestres e, o mais difícil, de chineses.

Kaka, un jugador imparable



Kaká rompió la pelota contra o Boca. Fez um gol tranquilo e deu dois passes para a besta-artilheira Inzagui realizar os tentos. O ator e modelo Nesta completou o placar de 4 a 2.

Aqui na Argentina (pelo menos em Palermo), alguns gritos esparsados, muitos gritos dos gallinas do river, poucos cafés abertos transmitindo a partida, hijos de puta pelotudo em vozes masculinas rasgando essa manhã extremamente ensolarada. A verdade é que, fora a campanha da Nike (patrocinadora da equipe), ninguém acreditava muito no Boca. Torcedores e imprensa querem a saída do técnico Russo. Vinham se estrepando no campeonato. Riquelme da platéia. Maradona, ontem, disse que só parando Kaká é que os bosteros poderiam comemorar. Bueno, não pararam.

A transmissão na tevê, estilo rádio, não paravam de falar do homem. E ele está aqui, está ali, que maravilha, increíble, o brasileiro tá rompendo, tá rompendo, ele ganhou a partida, como é maravilhoso, como riquelme, faz o time andar e jogar, sempre pensando no companheiro, divino, imparable.

Após as derrotas inexplicáveis da seleção argentina para a brasileira, os elogios ao futebol tupiniquim cresceram. É como a sensação do vascaíno em uma final contra o Flamengo no Maracanã: bom, vocês têm razão, vice de novo (eu sou vascaíno e sofro com isso. Mas o fato virou regra). O Brasil está em alta em terras portenhas.

Kaká não morreria de fome aqui.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

A Cultura dos Enfrentamentos


Uma coisa que me espanta na Argentina, mais no sentido de estar pouco acostumado a isso do que pela surpresa negativa, é a frequência de enfrentamentos que existe entre policiais e manifestantes.


Os manifestos se dao por muitos motivos. Mais ainda em um país que tem alma avançada da cidadania (e tenta lutar por seus direitos) e o corpo atrasado e doente do subdesenvolvimento (emergente de c. é r.). Reclamar muito ainda é pouco para os problemas.


Noto também que a maioria dos reclamos envolve o bolso. Ninguém sai às ruas para falar da educaçao e do pouco investimento em tecnologia, por exemplo. Geralmente é essa relaçao: o governo ou a empresa mexeu na minha carteira.


Estou aqui há dois meses apenas e já vi protestos de professores (greve ferrenha), médicos, agricultores e, para o meu espanto e dúvida de que realmente estava vivo e sano, de, inacreditável, advogados.


Nas últimas semanas, no entanto, dois enfrentamentos foram extremamente violentos. O que me deixa um pouco incomodado é que os portenhos tratam essas pequenas batalhas, com uma certa, como dizer, naturalidade (embora essa nao seja a palavra exata. Mas é a que mais se aproxima do que quero dizer). Sim, saiu nos jornais e nas tevês. Ponto. Sem alarde.
Há alguns dias, os taxistas e motoristas de ônibus quebraram um pau tremendo com os policiais por causa de uma mudança na lei de trânsito que penalizava mais os erros da galera do volante. Cenas dantescas, de gente caída tomando pisada na cabeça, sangue pra lá e pra cá. Tragicamente engraçado ver aqueles senhores partindo para cima de jovens oficiais amedrontados (e, como medo é reaçao, violentos).


Ontem liguei a tevê e mais porrada. O canal 12 mostrou quase 07 minutos de porradaria estilo baile funk da chatuba sem colocar nenhuma narraçao. E com poucos cortes. Parecia que estávamos ali e iria voar um soco na nossa cara. A contenda, dessa vez, foi entre funcionários de um cassino e os donos do cassino. Causa: a demissao de um montón de funcionários por um cassino (e uma briga antiga entre dois sindicatos rivais também no meio. Briga que também aconteceu há um mês).


O bom é que nao é a maniqueísta relaçao legal x ilegal. Trata-se do exercício por direitos e luta contra abusos de grupos de trabalhadores conscientes e , de certa maneira, organizados.


O ruim é que se chega às vias de fato com muita rapidez. A guerra, como ausência ou falha da comunicaçao.

Democracia tem disso.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

O Muro de Chavez


O perigo de falar de Hugo Chavez é ter que cair de um lado do muro espinhento, já que as flores e os braços capitalistas parecem estar presentes em um terreno só. O terreno é a língua inflamada e panóptica de articulistas políticos e econômicos (o primeiro quando dizem virar um ditador, o segundo quando dizem virar um ditador que detém petróleo nos pés) de importantes jornais/blogs/sites brasileiros com sérias e amedrontadoras inclinações reacionárias. Nesses meios, figura-se a cara demoníaca de um presidente polêmico.

A tecla de uma letra só nos diz que Chávez é um governante populista, com pretensões e feitos ditatoriais, perigoso para a soberania de países da América Latina (e vizinhos), irascível e marketeiro. Fechou um canal de tv , mudou a constituição em favor próprio, quis mudar mais uma vez, fudeu a Venezuela.

O lado com cacos de vidro e fuzis neo-liberais é a de um homem com defeitos e erros, mas que baseia sua política em um feroz anti-imperialismo, na independência ideológica e financeira de países ditos avançados. Que fechou uma tv supostamente isenta, mas que trabalhou por de baixos dos panos por um golpe estadounidense (isso sim, uma atitude anti-democrática), que defende com unhas e dentes o petróleo de sua terra, que criou leis que aumentaram a participação popular ( e que reduziram a das empresas e domínio privado) , ou seja, que mexeu no queijo de gente semelhante a quem o critica no Brasil.

O perigo desse lado espinhento, é que o lado bonito não só o critíca mas, ao fazê-lo de maneira quase passional, legitima o poderio insano, de atitudes arbitrárias e desumanas dos países que querem manter a hegemonia no mundo. Em que cabeças os Eua não é um país ditatorial? Só porque o é para fora e não pra dentro? Por que o medo do julgamento internacional (Lula se aproximando de Chavez = Brasil como ameaça à democracia, ainda mais agora com importância e presença em combustíveis)? Por que o medo de assumir que a democracia dos países da América do Sul não pode ter como molde,exemplo e regras, a mesma usada em nações que detém novos mecanismos de escravidão, que bota sobre os pés os novos vassalos latinos, que fala de igualdades e deveres mas cria escadas e suprime os direitos?

A imprensa vai continuar tendo coragem de chamar Chavez de ditador com a atitude que teve ao perder, legitimamente, um plebsicito nacional? Em uma constituição que foi mal-interpretada e mal-divulgada pela mídia nacional?

Coloco aqui um ótimo texto sobre o lado do muro que questiona o assunto e, por isso, está cada dia mais esvaziado.


www.carosamigos.com.br
Assunto: 315ª edição (22 de novembro) - Chávez e o Império. Por Carlos Azevedo.
Data: 22 Nov 2007 16:43:17 -0300 De: "Caros Amigos"

O rei de Espanha mandou o presidente da Venezuela calar-se. A euforia tomou conta de todas as direitas, mas também deixou confusa muita gente boa. O que Chávez havia dito durante a Conferência da Comunidade dos Países Íbero-americanos? Que o ex primeiro-ministro espanhol, Aznar, é um fascista. O atual primeiro ministro da Espanha, Zapatero tomou a palavra para dizer que, embora tendo grandes divergências políticas com Aznar, achava que ele devia ser tratado com respeito. Zapatero não podia fazer diferente, tinha que se manifestar, porque sabia que seria cobrado na Espanha se houvesse se mantido em silêncio diante da crítica pública de Chávez. O que fez Chávez enquanto Zapatero falava? Mesmo tendo o som cortado, continuou a falar paralelamente, interrompendo Zapatero, insistindo em seus argumentos contra Aznar, lembrando que este havia apoiado o golpe de Estado que derrubou Chávez do poder por dois dias em 2002 (por ordem de Aznar o embaixador da Espanha foi o primeiro a reconhecer o governo golpista)... Chávez estava cheio de razão, mas, como muitas vezes, foi impulsivo, deselegante, infringindo a etiqueta da diplomacia etc. Nesse momento, impaciente, o rei Juan Carlos exclamou: “por que não se cala?” A imprensa das classes dominantes do Brasil exultou e aproveitou para achincalhar Chávez mais uma vez. Por que tanta animosidade contra Chávez? Vejamos: quando Chávez foi eleito presidente da República pela primeira vez, em 1998, a Venezuela estava em falência política, suas classes dominantes, mergulhadas em profunda corrupção, desmoralizadas, não conseguiam mais governar. A maior riqueza do país, o petróleo, entregue às multinacionais de petróleo americanas, era partilhada por estas com as elites tradicionais e a alta classe média, ambas americanizadas, vivendo mais nos Estados Unidos que em seu país, seus filhos indo em massa estudar na Flórida, falando mais inglês que espanhol, acostumados todos a ver a Venezuela como uma fazenda de onde extraiam sua boa vida. A Venezuela é o terceiro maior produtor de petróleo do mundo e exporta a maior parte da produção para os Estados Unidos. Chávez começou por questionar a dominação americana sobre o petróleo. Procurou fortalecer a capacidade de negociação da PDVSA (a empresa estatal venezuelana) com as multis. Além disso, constatando que as políticas das grandes potências haviam levado à redução brutal do preço internacional do petróleo (chegou a menos de 20 dólares o barril de 60 litros, isto é, petróleo estava mais barato que água mineral), assumiu a presidência da OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) e desenvolveu uma política de valorização do preço do óleo. Isso causou ódio e remordimento nos Estados Unidos e nos outros países ricos. Chávez também tratou de retirar das classes dominantes locais parte dos benefícios que recebiam do petróleo para poder investir na melhoria de condição de vida da população trabalhadora, especialmente em educação, saúde, alimentação, habitação. Isso enfureceu os velhos setores dominantes venezuelanos. Também o governo direitista espanhol, então comandado por Aznar, se incomodava. Porque a Espanha, ainda que há muito derrubada de sua condição de potência colonialista na América Latina, mantém grandes investimentos e desenvolve grande influência política por aqui, na condição de país sub-imperialista. Os americanos, auxiliados pelo governo de Aznar, conspiraram com as classes dominantes locais pela derrubada de Chávez em 2002. Deram o golpe, mas não levaram, impedidos por um levante popular associado a uma tomada de posição de parte das forças armadas em favor legalidade. Chávez reassumiu tendo muito mais clareza de quem eram e como atuavam os inimigos do povo venezuelano. Aprofundou sua política de nacionalização do petróleo e de destinar os benefícios dessa riqueza para os mais pobres. Sabendo o tamanho da ameaça, tratou também de fortalecer as forças armadas venezuelanas, comprando armas para melhorar a qualidade da defesa do país, vizinho de uma super-armada e pró-americana Colômbia e de várias bases militares dos Estados Unidos. Como diz o velho ditado, “bobo é quem pensa que o inimigo dorme”. Chávez também mudou as leis do país, promoveu a elaboração de uma nova Constituição, reformou a Justiça e o Parlamento, reforçando a participação popular. Por tudo isso, Chávez é acusado de ditatorial. O interessante é que todas as mudanças promovidas por Chávez foram feitas à partir de eleições, plebiscitos e consultas à população. Desde 1998 realizaram-se dez eleições e plebiscitos no país. Nenhum governo em tempos atuais consultou tão freqüentemente a população como o venezuelano. Eleições cuja lisura não foi contestada por observadores internacionais. Chávez ganhou todas e por larga margem. A oposição golpista, decidida a desmoralizar o regime político do país, esteve ausente de uma eleição. Comandou a abstenção, mas o povo votou em massa em Chávez e em seus candidatos ao Congresso. Resultado, com esse ato estúpido, apolítico, a oposição ficou sem representação nos poderes da República. E depois, saiu acusando Chávez de ditatorial. Certamente Chávez tem lá seus defeitos. Mas para se adotar uma posição madura sobre ele e seu governo, para ver com clareza no meio desse tiroteio é preciso levar em conta o principal. Registro três aspectos: 1)Trata-se de um governo antiimperialista, construindo a independência de seu país e, por isso, um poderoso aliado de todos os povos latino-americanos na luta contra as políticas imperiais que nos empobrecem e mantêm dependentes. O Brasil e todos os outros países do continente têm sido beneficiados pelas posições e políticas do governo de Chávez. 2) Também é preciso ver que ele vem promovendo políticas de melhoria das condições de vida da população trabalhadora e mais pobre da Venezuela e estimulando seu desenvolvimento econômico. 3) Todas as grandes decisões de governo têm sido respaldadas em eleições legítimas. Atualmente, a irritação oligárquica contra Chávez alcança um novo ápice. Isso porque seu governo está propondo uma nova reforma constitucional. Uma das propostas é ampliar a possibilidade de reeleição do presidente da República. O povo venezuelano vai votar livremente e dizer se apóia ou não essa proposta. Se apoiar, Chávez poderá se reelegr outras vezes. E o povo venezuelano irá conferir no futuro se tomou uma decisão acertada ou não. É seu direito, é sua responsabilidade. Isso é democracia, é ou não é? Ou democracia é comprar deputados e fazer passar uma emenda à Constituição no Congresso para permitir a reeleição do presidente, sem consultar a população, como fez FHC mudando a regra do jogo para ganhar um novo mandato em 1998? Isso é democracia ou é golpe? É golpe. Mas para a imprensa oligárquica FHC é o democrata impoluto. E Chávez é que é ditador? Poupem-nos de tanta hipocrisia! Carlos Azevedo é jornalista

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Educação como prática da liberdade? Alfabetização freireana em Guiné-Bissau

Texto maravilhoso de uma grande amiga, que tem um grande trabalho.
Como me interesso pelo assunto, também coloco no meu blog. Se quiser ler o texto na íntegra: Tempo Presente. Uma pena que os brasileiros saibam pouco sobre um de seus maiores educadores. E que seu conhecimento nao esteja nas bocas de quem queria que estivesse.
Por: Larissa Costa (PPGHC/UFRJ)1


Guiné-Bissau é um pequeno país localizado na costa Ocidental da África entre o Senegal e a Guiné-Conacry. Na década de 1970, tinha cerca de 800.000 habitantes que viviam majoritariamente da agricultura. Esta região, que fora colônia portuguesa por 5 séculos, se tornou independente, em 1974, após 15 anos de luta pela libertação.

A Guiné-Bissau, no após-independência, tinha todas as condições objetivas para depender de outras sociedades, visto que seus recursos financeiros eram escassos e sua estrutura produtiva era frágil, não integrada e nem auto-sustentável, por ter sido organizada para atender as necessidades externas. Entretanto, este país optou por um projeto de desenvolvimento sócio-econômico que visava a transformação da sociedade, buscando romper com a situação de dependência. (Cf. ALMEIDA, 1981, p.2-3)

Quadrinho publicado no jornal guineense Nô Pintcha


No período de transição, de 1974 a 1976, os dois primeiros anos após a independência, o objetivo não era mais combater um inimigo concreto, mas era edificar uma nova sociedade. Para tanto, eles visavam promover o “suicídio de classe”, termo de Amílcar Cabral, líder do movimento pela independência de Guiné-Bissau e Cabo Verde, empregado pelos integrantes do PAIGC, ou seja, pretendia-se acabar com a elite nacional de aculturação portuguesa. (Cf. FREIRE, 1977, p.21-23, OLIVEIRA, 1980, p. 77-82) Este objetivo de reconstruir a nação sem lutar contra um inimigo palpável foi de uma abstração tal que não suscitou o mesmo entusiasmo e mobilização populares, donde podemos inferir que a herança colonial atuou como forte freio ao projeto de desenvolvimento nacional. Vale lembrar que Guiné-Bissau era, naquele momento, um pequeno país desprovido de riquezas valorizadas no mercado internacional, a população continuava a viver em regime de auto-subsistência nas zonas rurais e a maior parte dos produtos consumidos em Bissau, capital do país, eram importados. Após o reconhecimento dos problemas nacionais, o Partido Africano pela Independência de Guiné-Bissau e Cabo Verde – PAIGC – resolveu introduzir as mudanças lentamente. Na educação, diante da falta de recursos optou-se por manter a estrutura escolar colonial, corrigindo, como o Comissariado da Educação dizia, os erros mais gritantes. (Cf. OLIVEIRA, 1980, p. 77)Devemos refletir sobre a manutenção da estrutura escolar colonial vigente, pois que benefícios poderia trazer aos guineenses a expansão de um ensino marcado pela ideologia colonialista? Em contrapartida, outra questão de fundamental importância é como mudar radicalmente a educação se faltavam recursos? O Comissário de Educação Mário Cabral, no início do governo do PAIGC, chegou a pensar no fechamento das escolas até que se organizasse o ensino de acordo com os novos parâmetros propostos pelo partido. Todavia, dois anos após a independência, em 1976, admitia que “isso era um sonho”, pois, ao fazer isso, acabaria optando por algo mais danoso, visto que a falta de recursos ocasionaria a interrupção das aulas . (FREIRE, 1977, p.50)

Continua

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Tangay



Hoje abriu o primeiro festival de tango gay de Buenos Aires. A terminaçao correta é "queer", um termo politicamente correto que surgiu nos estados unidos há alguns anos para colocar em um bolo só (como se fossem ingredientes ou precisassem de classificaçao) os gays, bi, trans, trav, simp e outras cacofonias sexuais.


E vai ter palestras, e vai ter oficinas, e vai ter filmes temáticos (de tango) e , claro, ai meu texto, muita dança!


O legal disso é que o festival nao surge do nada. Existe um pequeno-movimento-crecente do tango queer. Em oposiçao aos códigos machistas de uma dança machista de uma sociedade machista (a argentina). A arte como encontro, toque, independente do ser tocado ou o ser tocante.

Vê aí: FESTIVAL QUEER TANGO

Almirante Negro




Hoje foi o fim da Revolta da Chibata. Há 97 anos atrás. Isso me faz lembrar que alguns grandes atos , pelo menos aqueles de grande representatividade, que vao inspirar e virar liçoes nas escolas, nem sempre "heroizam" seus heróis. É o caso do Almirante Negro.


Ele nao morreu com tiro no peito, sangue e camera lenta. Foi com um cancer no intestino, aos 89 anos de idade.


Lutou contra as injustiças sociais e raciais. Mas foi visto como um bandido da cara preta. Virou até queridinho de intelectuais (que adoram histórias do ignorante genial). Mas ninguém comprou angu pra sua família.


Ganhou um Aldir e Bosco, um doc.urto de 1987 e um livro. Ainda nao recebeu anistia da Marinha. Quiseram transforma-lo em herói da pátria. Entrei no site do Governo Federal. Nao consegui informaçao de nada disso aí em cima.


Foi preto. Nulo. E nada. É o que fazemos com nossos personagens borgenianos. Invalidamos ainda mais as horas de um homem.


Matéria JBlog




quinta-feira, 1 de novembro de 2007

A nova paixão argentina


Texto meu roubado de um blog para o qual escrevi. É uma putaria de blogs. Quem quiser visitar: www.poresporte.blogspot.com

Seleção de rugby da Argentina vira mania entre os hermanos (foto: divulgação)

Por Bruno Moreno, de Buenos Aires

Eles são uma mistura de lenhadores, guerreiros bárbaros, seguranças de boate e modelos. Estão nos outdoors de Buenos Aires, nas tevês, nas capas dos principais jornais. Fazem campanhas de mates e de lojas por atacado. Aparecem em poses sensuais em calendário estilo Pirelli. Viraram febre entre jovens e idosos, homens e mulheres. Não são artistas, nem futebolistas. Os Pumas, como são chamados os jogadores da equipe de rugby da Argentina, são um fenômeno de mobilização e marketing em torno de um esporte.

Não é à toa. Fizeram história no Mundial de um esporte que é pouco conhecido no Brasil, que acabou de ser disputado na França. Chegaram em um inédito e aplastrante terceiro lugar, vencendo os donos da casa na decisão do bronze. Se já eram festejados como guerreiros antes disso, agora são celebrados como heróis. Essa semana, uma multidão foi recebê-los no aeroporto cantando a plenos pulmões o hino nacional.

A camisa da seleção é branca com listras azuis, mas horizontais. São 15 'animales' em campo. O nome Pumas surgiu em 1965. Na ocasião, a Argentina venceu, em jogo histórico, a equipe júnior da África do Sul (apelidados no meio de Springboks), em Johanesburgo. Um jornalista local confundiu o Jaguar, símbolo da equipe, com um Puma. Pegou.

Claro que essa paixão tem uma história. O rugby é um esporte de classe média-alta, com 50 anos de existência no país. Conta com boa adesão e presença marcante no cotidiano argentino, ainda mais se pensarmos em uma modalidade tão distante das que temos na América do Sul. São 45.000 jogadores no país e 250 fora dele. Ídolos do passado também são festejados, datas lembradas. Existe um torneio nacional bem disputado, a URBA. Alguns dos Pumas surgiram desse campeonato.

As equipes são dos bairros da Grande Buenos Aires e demais províncias. O "ráguebi" sempre teve seu lugar cativo no dia-a-dia desportivo daqui, mas nunca com aceitação popular nesse vulto. Horácio Pagani, articulista do Diário Clarín, ilustra bem isso ao descrever uma vitória da seleção no mesmo dia de um clássico nacional.

"Cheguei na redação depois de um Boca e River. Achei que ia encontrar as pessoas falando da atuação dos jogadores, dos lances polêmicos, gritando o maior clássico do país. Para minha surpresa, vislumbrei um ambiente tenso, com os olhos voltados para a TV, com gritos e comentários sobre a atuação de uns monstros em torno de uma bola ovalada. Eram os Pumas enfrentando a Escócia nas quartas. Aos poucos, fiz parte da platéia. E, sem me dar conta, já estava envolvido com aquela garra, me sentido mais patriota do que nunca. Quando vi, já estava com os punhos no ar comemorando a vitória da seleção e me esquecendo que tinha uma matéria para escrever sobre o que supostamente seria o mais importante: o superclássico".

Nota importante: no dia do jogo contra a Escócia, após o clássico acima referido, alguém inventou de colocar um telão no Monumental de Nuñez, com o jogo dos Pumas ao vivo. Passados alguns minutos, tiveram que desligar. Nenhuma das duas torcidas havia saído do estádio ainda, assistindo à partida.

Máquinas de porrada e marketing

Fora dos campos, os Pumas também se deram bem. Com patrocinadores grandes e abundantes como Quilmes, Adidas, Peugeot, Nike e Visa, eles movimentaram a economia argentina. Estima-se que houve um investimento, só em campanhas publictárias, de 30 milhões de pesos. Isso é mais do que foi gasto com a seleção de futebol na Copa da Alemanha.

A audiência televisiva esteve nas alturas. As partidas dos Pumas fizeram o canal aberto 9 conseguir índices raríssimos, principalmente se tratando de um jogo de rugby. Mesmo dividindo telespectadores com a ESPN e o futebol, ficou entre os quatro primeiros no geral. Já se pensa a cobertura do torneio nacional.

As campanhas geralmente são associadas à garra e ao compromisso dos jogadores. Mesmo na adversidade, mesmo contra adversários mais fortes, mesmo desacreditados, os Pumas se superam e seguem em frente. É clara a associação desse espírito com o espírito argentino de batalhas e conquistas, ainda mais em um ambiente econômico ainda instável e de derrotas seguidas no futebol, que ainda se sustenta como a maior paixão.

Além disso, são vistos como animais com corações doces. Uma propaganda interessante mostra um dos defensores da equipe dando porrada em todo mundo. Ao fundo, uma ópera bem cantada. Bem cantada por ele mesmo. Omar Hasan é um monstro, barítono e vai lançar um cd de ópera com tango.

Mais exemplos são o abuso da imagem dos jogadores abraçados unidos, cantando em coro, de forma apoteótica, em todas as partidas, o hino nacional (chegou a dar polêmica essa maneira tão efusiva de patriotismo). Os Pumas viraram exemplos até para empresas grandes, em treinamento de coletividade e grupos de RH. Se tornaram um modo de viver, um exemplo de conquista e êxito que promete ser ainda bastante explorado pela mídia.

Efeito Puma

Após a bela campanha dos Pumas no Mundial, as atenções se voltam para o torneio nacional. A URBA chega às semifinais (se darão em novembro) e a procura por ingressos já é grande. Mas o fato que mais chama atenção é o aumento vertiginoso da procura por vagas nas escolinhas de rugby.

Um dirigente de um dos times de Buenos Aires disse que já recebeu cerca de 500 inscrições só este mês. Dez vezes mais do que o normal. Segundo dados da UAR (Unión Argentina de Rugby), em 2005 e 2006, o número de inscrito em escolinhas infantis era de 14 mil. Só em 2007, já chega a 17 mil. E a maior parte desse número se deve ao último mês. O número de crianças vai crescer cerca de 35% com relação aos anos anterirores. "Ninguém esperava isso", afirma Edgardo José, diretor das categorias infantis do UAR, ao La Nación.

A Pumamania se deu também entre jovens e adultos. Os clubes registraram um aumento, mesmo que menor, nas categorias entre 17 e 23 anos. Não só em Buenos Aires, mas também na maioria das províncias argentinas. "É muito bonito o que está acontecendo no país", completa Edgardo.

Futuro

No ano passado, liderados pelo capitão Agustín Pichot, a maioria dos jogadores do plantel atual bateu de frente com os dirigentes da UAR e renunciaram à seleção. Na época, alegaram falta de estrutura, falta de investimento, falta de atenção aos jogadores que lutavam em campos argentinos, e a suspensão de seus salários.

Alguns os tacharam de mercenários, quando, na verdade, chamaram atenção para a melhoria do esporte. A contenda chegou ao fim, os jogadores se uniram e prometeram fazer história. Pichot saiu da França, onde joga, para defender os Pumas na Argentina. Recebeu apenas 20 pesos de pagamento.

Agora, esses mesmos jogadores voltaram a cobrar mais profissionalismo por parte dos dirigentes. "Se queremos um esporte de ponta, não devemos mais funcionar como amadores", declarou Pichot há alguns dias.

Há uma pressão internacional para que a Argentina seja incluída nos principais torneios do esporte, além do Mundial: os das Três e Seis Nações. A imprensa diz que a UAR precisa se esforçar mais para que a seleção participe desses campeonatos. E que eles são fundamentais para a melhoria da equipe e preparação para o Mundial de 2011, na Nova Zelândia.

Fora os embates nos bastidores entre imprensa, atletas e dirigentes, um fato ocupa a mente de todos: a renovação. Algumas das principais estrelas já não estarão mais na equipe e o atual técnico, Marcelo Loffreda, já entregou o cargo para treinar uma equipe inglesa.

Apesar disso, novos astros (no campo e no marketing) já surgem. Os jovens Juan Martin Hernandez e Ignacio Corleto são um exemplo. "Temos bons jogadores vindo aí, além da manutenção de alguns outros mais experientes. No entanto, esse trabalho tem que continuar a ser feito, com profissionalismo e ajuda de todos. Sem brigas políticas, sem rivalidades, sem norte nem sul", idealiza Pichot, candidato a novo técnico, capitão, líder e símbolo de uma geração que fez história e criou uma nova e promissora paixão nos corações argentinos.

sábado, 27 de outubro de 2007

Jenifferização do Globo ou Quércia Vem Aí



Jurei não escrever mais sobre a argentina nesse blog. Mas estou aqui e leio coisas do Brasil. E vou ser breve.

Com todo perdão ao Globo, ao discurso de audiência na Internet, de informalidade da linguagem e essas justificações mal-ajambradas para o fim de um jornalismo sério, vá às cucuias a matéria sobre Cristina Kirchner, publicada ontem no on.

Estou aqui em Buenos Aires e acompanho de perto e com muita atenção as eleições (que se darão neste domingão. De sol, espero). A Argentina não é um país qualquer. Está atrelada ao Brasil historica, cultura e, por causa do louvável (embora criticável) Mercosul, econômicamente. Milhões de coisas importantes ocorrem nas campanhas e no atual governo. Ótimas variáveis para serem exploradas nessa reta final (e algumas, justiça seja feita, postadas no referido site) como a divisão por classe social dos votos argentinos, a disputa pelo segundo turno, a força das mulheres na política daqui e a constante reinvidicação ao posto de Evita Perón, o desinteresse dos jovens portenhos pela atual eleição a presidente, o antikirchinerismo, as mil patas do peronismo (o que é? o que é o neo? como se tansformou nessa cultura neoliberal? quem se aproveita dele?), o suposto aumento da corrupção (mas como também esse governo denuncia mais do que outros), o Indec (taxa de inflação), as coligações e a força das províncias nos votos, a falta de presidentes de mesa para as urnas, as filas imensas e às pressas para retirada do DNI (identidade daqui e que permite votar) e etc.

No lugar disso, um retrato triste, pouco inspirado, de alguns editores de moda, sobre o jeito Cristina de se vestir, pentear etc. Com a pretensão de ser um retrato sociológico através da banalidade (o que se pretende pós-moderno e cujo resultado mostra o contrário), dizem que a candidata é uma espécia de Jennifer Lopez. Como diria Silvio Luiz: o que é que eu vou dizer lá em casa pra patroa? Eu não digo nada. Em vez disso deixo uma sugestão de matéria (pra aqui ou para o Brasil) de uma excelente e séria (nunca vi nada parecido aí) revista chamada Caras Y Caretas (especial eleições).


Na edição 'A Epopéia do Voto', a história do voto na Argentina contada por diversos especialistas, com artigos aprofundados e informativos. Assim como crônicas e reportagens especiais sobre fatos do país (aumento da pobreza, aniversário de morte do Che Guevara, a poluição dos Rios em torno de Buenos Aires). No entanto, uma me chamou atenção pela criatividade, apelo e contextualização.

O jornalista Pablo Llonto , em matéria chamada, 'Yo Pintaré las calles nuevamente', conta a história das eleições na argentina através das pixações nos muros de Buenos Aires. Palavras de protesto, reproduções de jingles e slogans de camapanha, frases proferidas por políticos. Tudo isso faz parte da cidade e nos conta, num mosaico meio marginal, o que se passou e o que se pode passar. Está no dia-a-dia, no nosso andar.

Ele faz um retrato simples e informativo sobre o que nos conta as palavras dos muros. As isenta da carga de marginalidade geralmente atrelada. Uma espécie de ensaio breve sobre os Quércia Vem Aí de nosso país.

terça-feira, 16 de outubro de 2007

GRAN HERMANO QUE VALE ASSISTIR



Quem é melhor: Pelé ou Maradona? Todos sabem que a esmagadora maioria dos brasileiros escolhem o negão e os argentinos , muitos deles, vociferam o posto de dieguito. No entanto, a tevê argentina deu um exemplo de que essa discussão pode ser aprofundada, alongada e , contra o que dizem os mestres instantâneos de mba’s da vida, encher de cultura o grande palco da espetacularização barra vendas. Nada que ver só com a questão acima. Até porque Armandito ficou fora da resposta à uma pergunta um pouco mais ampla: qual é o maior argentino de todos os tempos?

Mais de dois milhões de portenhos responderam, através da clássica fórmula bigbrotheriana de sms + internet. Quem perguntou foi o programa El Gen Argentino , que passou no canal aberto Telefe. Interessante ver nomes grandiosos como Borges, Fangio, Evita, Che Guevara, Piazolla, Mercedes Sosa, o próprio Dieguito e por aí vai. Melhor ainda verificar o formato do show. Composto por um apresentador e quatro especialistas (três jornalistas e um historiador – que municiavam de informações , elogiosas e críticas, aos telespectadores, assim como respondiam perguntas sobre as figuras históricas), além de uma platéia um pouco mais questionadora que as velhinhas vazias e doces do Sílvio Santos, ‘El Gen’ tentava explicar um pouco dos passos de uma nação através dos seus mitos. Dividiu primeiro em categorias (esportes, artes, política). Depois foi rolando o saudoso mata-mata (volta, Brasileirão!) até se chegar nos finalistas.

Vão dizer que é impossível fazer esse tipo de julgamento, que é perda de tempo, etc. Para mim, a quem interessar possa saber o que acho de alguma coisa, todo tipo de reflexão a ser feita nesse mundo midiático é válida. Ainda mais quando entra em um canal aberto, democrático. O próprio apresentador, antes de anunciar o hermano número 1, agradeceu a oportunidade de se fazer um tipo de programa assim: com análises, informações históricas, debates críticos, sem a presença (incrível essa) de nenhuma modelo-atriz, ator-cantor, famoso-nada, participante-quem, da vida. É um momento de se respirar e dizer, de um certo modo, que ídolos criamos, qual o seu legado, como devemos ver isso, o que lembrar, por que lembrar. O formato da Endemol teve sua hora de anjinho e cochichou coisas boas nos ouvidos dos teles. Curioso notar também que os argentinos também precisam tomar mais óleo de fígado de bacalhau patriótico. Ginobili teve mais votos que Borges, Batistuta na frente de Piazolla e , entre os 30 mais, nenhum ativista política, prêmio Nobel. Um dos julgadores presentes puxou a orelha da galera: “Que tenham mais senso crítico e orientação histórica na hora de votarem” (a eleição para presidente aqui é em duas semanas)”.

Percalços à parte e mesmo merecendo mais votantes, a contenda chegou ao fim. Cara-a-cara, dois monstros sagrados das ações transformadoras de um país e dos seres humanos dentro dele: General San Martín e René Favaloro. O primeiro libertou todo mundo. Nasceu aqui, foi pra Europa, lutou com os espanhóis contra os franceses , voltou e , contra os mesmos espanhóis, quis libertar sua terra. Acabou ajudando a libertar o Chile e o Peru também. O segundo foi só o cirurgião cardíaco que criou o by-pass, a ponte de safena, que salva milhares até hoje. Favaloro operou um bondão da classe pobre de graça e se suicidou em 2000. Deu o General por apertados 55%. De qualquer maneira, uma linda reverência a tudo o que um país criou, uma eficiente referência aos chicos que podem criar mais ainda.

E o Brasil, hein? Por quê não copiamos descaradamente e fazemos algo do tipo? Não vale a pena tirar mitos encruados das entranhas? Recriar Getúlio é mexer no queijo do Lula? Humanizar o Pelé é tirar da indústria folclórica e identitatória do futebol? Dizer que Machado é preto é burrice de movimento? Estamos com medo de que a Xuxa apareça na frente de Paulo Freire?

Será que temos medo de não ter figuras que escapem de fatos vexatórios? Será que daremos conta de que a pergunta que nos corrói e que afinal teremos que fazer é uma pergunta sem resposta?

Quem é melhor: Capitão Nascimento ou Zé Pequeno?

terça-feira, 9 de outubro de 2007

Guerra dos Tomates


Nao precisei ir muito longe para ver uma açao de coletividade funcionando. Virei a esquina. Aqui em Buenos Aires , em plena era do elogio do consumismo e prazer pessoal, os cidadaos, exercendo o papel de verdadeiros consumidores (os que entendem que a força está em quem compra, nao em quem vende) deram uma aula de organizaçao e atitude. E o vilao dessa história nao é nenhuma mega –corporaçao. Trata-se de um serzinho vermelho, meio fruta meio legume, com pele fina e vascularizada: o tomate.


Há um embate aqui sobre as taxas de inflaçao, o chamado INDEC, divulgadas pelo governo. O presidente Kirschner diz que elas estão corretas, ou seja, baixas, controladas. Alguns outros órgãos independentes, de entidades de consumidores (Defensa de usuarios y consumidores, Centro de Educación al Consumidor, Asociación de Defensa de Usuarios y consumidores ,etc) dizem que não. E, para provar, compararam o preço do tomate divulgado pelo INDEC e o preço real. Parece piada. Na tabela do governo, o fruto está em torno de 04 pesos, o kilo. Nas prateleiras de supermercados e nos mercaditos ou verdulerias (umas lojinhas bonitas e organizadas que vendem frutas e verduras e que estão quase em toda esquina) chegam a 18 pesos. Ontem passei por uns três aqui no bairro de Palermo. De manhã o tomate estava custando 16, o kilo, em média.


Pois bem. Os argentinos ,então , pararam de reclamar e agiram. Tais entidades convocaram a populaçao para uma semana de boicote ao vermelhinho. Nas ruas, apoio total. Quase ninguém compra tomate. Todos acham um absurdo, que há alternativas para a salada e para os molhos. Até os comerciantes fazem aquela cara de sem-graça e concordam com a ação. É uma mobilização para mostrar que o governo está enganado (ou querendo enganar). Alguns supermercados, eles mesmos, se juntaram e comunicaram que não vendem mais tomate até o preço abaixar. O presidente da Federação de Comércio de Buenos Aires, o Raúl Lamacchia, declarou ao Clarín que o alto preço é fruta da grande demanda, resultado do crescimento que vem passando o país. Os agropecuários se calam. A favorita à sucessão da presidência, Cristina Kirschner, diz que essa dinâmica nos preços é razoável, normal. E voltou, junto com o marido, a defender o INDEC. Detalhe que no almoço de ontem dela com alguns empresários, de acordo com o La Nacion, uma bela salada caprese, com um belo recheio de tomate. A oposição faz o seu papel (se opor) e diz que, nas palavras de Roberto Lavagna, adversário direto de Cristina ( e ex ministro da Fazenda de Kircshner)o governo fez um monte de besteiras na área econômica e que suas intervenções fazem cair os investimentos.


Palavras à parte, li o Clarín de hoje e vi que o preço dos tomates tinha baixado drasticamente. Em apenas um dia. Fui novamente no mercadito aqui perto de casa. Cheguei na seção do fruto, o dono me olhou sabendo que eu só estava lá pra ver, checar, assim como muitos outros o faziam na mesma hora. Fui embora com a comprovaçao do Clarín e da força das atitudes coletivas. Em pouco mais de 24 horas o kilo do tomate da salada caprese de Cristina Kirschner tinha baixado de 16 para incríveis 9 pesos. “Tenho que baixar. Ninguém compra tomate” – disse o dono do mercadito. E ainda temos uma semana pela frente.

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

O ensinamento de um mito



Dezembro de 2007 será o mês de aniversário de uma revolução. A primeira, de duas. Provavelmente não será comentada como o marco de uma era, e do modo de vida de uma era. Provavelmente o seu líder , o Buendía do sapato brilhoso, será o foco distorcido de um acontecimento lindo. No dia 01 do mês referido, há 25 anos atrás, o álbum Thriller, de Michael Jackson, era lançado nos Eua.


Foi pioneiro ao levar à criação da linguagem dos videoclipes modernos, como na faixa-título. Foi profético ao mostrar (a ainda invisível) monstrualização de um artista. Foi suave , na junção melódica perfeita com Paul Mcarney em ‘Girl is Mine’. Foi genial por causa também da genialidade de Quincy Jones, como no arranjo de Beat It (salve Van Halen), uma faixa perdida em mais de centenas, que encontrou o ouvido privilegiado de um negão jazzístico. Foi pop, profundamente pop e em tudo o que isso pode significar além da fama e quantidade (de grana, de flashes, de polêmicas, de palavras) , no feito quase insuperável de ‘Billie Jean’. Não foi um disco.


E também não foi daí que o mito de MJ surgiu, mas foi a partir dele que houve o casamento quase sagrado de um homem, sua música, do mundo e de como esse mundo se move. Thriller e MJ entraram como água nos parafusos do sistema pré-neo-liberal, no embrião das tvs musicais, do mercado paralelo da fama, do espetáculo, no apocalipse imagético preconizado por Debord, da imagem acima de tudo. A música do álbum também era imagem, e imagem virtualizada, na pura acepção de fluidez (Bauman) , metamorfoses. Era um mosaico de identidades possíveis (o trash, o romântico, o pop). Indicava o fim da modernidade tão comentada pelos pós-modernos. Era o que a indústria da música precisava pra vender, era o que a indútria televisiva precisava para aprender a fabricar mitos em mundo que já metia o pé na globalização, era o que as pessoas do mundo precisavam para aprender a consumir e a se desforrar de alguns penduricalhos. E está aí a revolução. Não era apenas música, mas também não era comportamento (só o Sgt Peppers bastava se fosse). O álbum não foi o marco de uma era. Ele ensinou o que essa ‘era’ poderia ser.
Mas sua importância se perdeu no tempo (anti-tempo, pós-tempo, destempo). Exatamente porque as engrenagens são tão líquidas que não têm memória. Um deus não é tão deus assim. Ficou em segundo plano porque o seu general pulou para o primeiro. E, nesse movimento, está a segunda revolução citada lá em cima. Um dos criadores da maneira de se ver as coisas no mundo, cortou os olhos do mesmo mundo (como Buñuel e Dalí fizeram em Cão Andaluz). Ele se monstrualizou. E fez a maior crítica já feita a esse sistema.


Aí é outro pequeno e pretensioso texto. No mais, parabéns aos 25 anos de uma obra-prima da música. Do avô de tudo o que se conhece como pop atualmente.

terça-feira, 25 de setembro de 2007

Mosaico Mano Brown



Mano Brown é uma das figuras mais importantes da música brasileira. Exagero para playboy ou para puritanistas do som. Não é qualquer pessoa que lidera a criação de um gênero no país. Principalmente de um com tantos ângulos a serem debatidos, enxergados, ruminados, como é o rap nacional. Qualidade musical ou intelectual à parte, ouvir Racionais é fundamental para a compreensão do Brasil. "Existem os que ficam no beco dos tristes. Em vez de ficar recriminando, vai lá pra entender o que eles estão pensando!" , diz o homem na arena demoníaca e opressora do Roda Viva, Tv Cultura, do dia 24/9.


A entrevista não foi das melhores não. Ele não sabe se expressar e, na verdade o que importa, quem o entrevistou não tinha idéia do que ele falava. Em português claro ou escuro. O único preto mais ou menos favela era o Paulo Lins. Mas esse é comédia , filhote de Regina Casé, café com leite. Então o cenário era de um homem que nunca aparece na mídia, cuja habilidade para construir um raciocínio ao vivo é temerária, com aqueles seres de outro mundo perguntando abobrinhas salomônicas sobre os "seus manos", além de um medo e tensão no ar da parte dos entrevistadores. Vai que o negão fica puto e sai atirando. Era a cara dos brancos.


A entrevista foi das melhores sim. Pelo menos pra mim, que pude entender um pouco mais aquela cabeça, aquela de versos geniais, de obras peremptórias, do líder de um grupo que é escutado até no cú da Amazônia, nas maquinhas da vida. Foi boa porque tive a oportunidade de ouvir uma figura imensa dizer que é contraditório, que não quer que ninguém o siga, que é um pai ausente. Um artista "da periferia" (argh!) chamar traficantes de ‘comerciantes’, de ‘parceiros’ e ver a cara estupefata dos entrevistadores assépticos, que são incapazes de entender essa relação muito além do maniqueísmo burro de heróis e bandidos que existe "lá". Tive a oportunidade de ver um homem falar que a atitude é a do cotidiano, mesmo que tenha se enrolado horrores pra dizer, de criar a barreira provocativa , transparente e raivosa do "nós" (pretos, favelados, da quebrada) e "vocês" (brancos, frouxos, dominadores) , de citar a pirataria inevitável. "Os caras vêm e falam: ‘pô, brown, assina aqui pra gente vender o teu disco!’ Aí eu vou ter que fazer né. Os caras estão ali ralando, tem filho pra sustentar. É o meio de ganhar dinheiro. Eu dou força porque eles estão o dia inteiro enchendo o saco tocando a minha música". Vi um ser público falar bem da Marta Suplicy e zombar do José Serra (Você acha que eu vou votar em quem? no Serra?). Dizer que um homem de família deveria ter vergonha de receber o auxílio-família do Lula. Enfim, de uma figura mitológica e controversa falar asneiras, verdades, tropeçar, explicar e até rir.


Mano Brown , embora inteligível em um alto grau, e com todas as críticas que faço a ele, ainda é um homem livre.

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Quanto custa um universitário? (Parte 1)



Saiu a pesquisa sobre os gastos em educação feita pela OECD, Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, . Além da conclusão já sabida que investimos pouco, muito pouco, no setor fundamental e médio (o pior entre os 34 países estudados), um dado que precisa nos fazer pensar: gastamos bem com os universitários. O Brasil é o país com a maior diferença entre os gastos entre estudantes dos setores básicos e superiores. Mas , além dos números, o que isso pode siginficar?


Bem, não sou dono da verdade mas coloco aqui alguns fatos que podem ajudar. E, como a Internet é o suporte do dinamismo por natureza, não vou me alongar muito.

O Brasil forma poucos engenheiros. Foda-se? Não. Esse dado nos diz que não há uma orientação educacional nas universidades nacionais. O capitalismo é a elegia do livre-arbítrio, mas alguma coisa está errada se pensarmos que as mentes brilhantes que saem de nossas academias não usem suas mentes brilhantes para as demandas do país. É como formarmos strippers gostosas em terra de homossexuais. Ou churrasqueiros numa tribo vegetariana. A informação não excita e apodrece. Do total de formados, apenas 5% são engenheiros, de acordo com o ibge 2005. Embora nerds, racionais extremos, espinhentos e incrivelmente chatos, eles são fundamentais para a estruturação urbana, desenvolvimento tecnológico e outros nomes compostos na indústria. Nos números da OECD divulgados esse ano, 69,8% dos brasileiros universitários cursam as ciências sociais, humanas e de negócios. Engenharia ? Apenas 4,5%. Física e matemática, 7,9%. Mais ainda.


De acordo com o Ibge, em 2005, cinco cursos de baixo custo representam 46,3% dos alunos universitários brasileiros, ou seja, quase metade (administração: 14,9%; direito: 12,8%; pedagogia: 9,3%; letras: 4,7%; e comunicação: 4,6%). Se os cursos de baixo custo formam metade do scratch canarinho, por que e onde gastamos muito com universitários? Com a tecnologia? Mas como se quase não formamos especialistas nas áreas caras? Essa pergunta fica mais intrigante quando vemos que praticamente metade dos que ingressam não se formam e, mais, dos que se formam, 53% não trabalha na área que suou tanto para concluir. Então gasta-se por nada? E que tipo de universitários formamos? Que mão-de-obra temos? Para onde vai o dinheiro da vovó? Quem achou o conhecimento que gastamos muito para ter?


Brincadeiras à parte, tais dados devem nos fazer questionar não só sobre um plano educacional, uma orientação do estado para a mão-de-obra que se forma, mas também até que ponto usamos os recursos públicos para servir a uma lógica privada, ou seja, será que gastamos muito formando jovens para que eles não retornem esse conhecimento apreendido para o país, mas sim para grandes empresas transnacionais?


Fora isso, onde estão especificamente esses gastos com o universitário brasileiro se as universidades públicas estão sucateadas? O gasto maior está nas privadas? Se estiver nas públicas (o relatório não especifica isso), é com os professores? Com a conta de luz e de gás? Com o quê? Onde se gasta se não há resultado educacional minimamente bom nas academias brasileiras? Ou será que existe esse resultado e não vemos quem formamos porque eles não trabalham com o objetivo de serem vistos por todos e sim por alguns poucos? Mais uma vez: não investindo quase nada na educação de base (o que supõe-se uma alfabetização do indivíduo, como cidadão, como ente coletivo, com o olhar do outro social, mais generalista e vasta) criamos cidadãos precários e investindo demais nas especializações (faculdades) criamos mão-de-obra manipulável desse mesmo cidadão precário?

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Shell deles (continuação)

Com relação ao texto da Shell que postei aí embaixo. Segue o exemplar comportamento das autoridades argentinas. Fecharam mais de 50 empresas em apenas seis meses. Eu , sinceramente, gostaria de ver algo parecido no Brasil.

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

Sicko


Michael Moore chegou. Após os premiados Tiros em Columbine e Fahrenheit 9/11, o documentarista de 53 anos de idade vai mostrar uma das imagens que mais incomodam o americano: Cuba. Na verdade, Sicko, seu novo filme, é sobre o sistema de saúde yankee, batendo demais nos planos e nos hospitais. Só que, ao fazer isso, mostra a eficácia ,na área , de uma ilhota controversa. A inimiga histórica liderada por Fidel.


Uma das passagens do longa mostra Moore saindo de Miami a bordo de um barco junto com dezenas de enfermos americanos, vários deles bombeiros e voluntários durante o 11 de Setembro. Eles chegam e pedem para ser atendidos na base norte-americana de Guantanamo (que atende combatentes da al-qaeda). Não obtém resposta e ,adivinha, são tratados com eficácia e seriedade pelo sistema público cubano. Independente de serem americanos.


"Me parece no mínimo imoral que 50 milhões de compatriotas não tenham acesso a um sistema de saúde decente. Isso no país mais rico do mundo. Uma criança de Detroit, hoje, tem pelo menos três anos a menos de expectativa de vida que um cubano". - disse Moore.


No mais, um retrato cruel, duro e sarcástico da máfia da saúde yankee. Que aprendamos a fazer uma relação com a máfia da saúde brasileira.

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

No Shell deles




A secretaria de meio ambiente argentina fechou uma refinaria da Shell. A ação faz parte de um projeto de despoluição do Riachuelo, um dos rios que limita a área de Buenos Aires e que é considerado um dos mais poluídos do país.


O relatório da secretaria indica sérias irregularidades na planta da empresa, infiltrações de material combustível em depósitos , assim como acusa a Shell de retirar , sem autorização, cerca 430 milhões de litros de água do Rio da Prata. A notícia se junta a uma briga antiga entre a multinacional e o governo argentino. Já faz alguns meses que o secretário de comércio , Guillermo Moreno, acusa a petrolífera de desabastecimento deliberado de gasolina . Inclusive o presidente Kirscher, em agosto desse ano, chegou a pedir à justiça a prisão de alguns executivos da corporação. A Shell diz que , em auditorias privadas, não foram encontradas tais irregularidades.


O ponto aqui é mostrar como o Estado ainda pode (e, minha opinião, deve) fiscalizar as multinacionais. No Brasil, essas empresas são quase intocáveis. A nova falocracia das marcas vira um bundalelê de turista excitado na zona tupiniquim.


Não se tem notícia de multas ou ações tão peremptórias como a que o governo argentino realizou. Não houve a barganha "sem nós-sem empregos" que aqui existe. Se polui, se está irregular, se usa a água inadequadamente e não abastece os postos, está fora da lei e contra o povo. É isso. Zéfiní. Ridículo cair na ladainha da Shell de que "auditorias privadas" (lê-se conchavos promíscuos e relatórios mentirosos) não detectaram nada. No Brasil, o conto do vigário vira fato, que vira regra, que vira doutrina e, passado alguns anos, fé.

quarta-feira, 29 de agosto de 2007

A ineficácia da palavra escrita

Hoje o mundo é contado por quem não o vive. Existe uma diferença abissal entre o que se vê ao vivo e o que se conta. Mais ainda entre o que se "sofre" (no sentido de objeto viral de uma ação) e o que se diz. Até que ponto a linguagem jornalística, como a conhecemos, é eficaz em relatar uma história? Até porque relata para mostrar. E o que mostra, não existe porque é passado, frisado, mediado, virtual. Se diz sobre o que não há, na concepção ocidental e ingênua de ilusão, não ilude? E quem apreende sistematicamente um mundo ilusório , não acaba criando e perpetuando uma supra-realidade, atualizada diariamente, em descompasso cada vez maior com o que existe? Os conceitos, pouco a pouco, não vão desgarrando das almas, de pessoa para pessoa? E o que, supostamente seria o mundo elogioso da informações democratizadas e antes impossíves, não se torna uma gotejante descomunicação? Pior, uma descomunicação que não se reconhece e gradativamente destrói os mecanismos e ferramentas que possibilitaria reconhecê-la? Não viramos cegos a enxergar o que somos no outro e no que pensamos saber, através das histórias que vemos, sobre o outro? Sem ver o que existe, falamos no que existe, nos guiamos no que existe?

Não seria melhor o fim da comunicação escrita? Para que reencontremos nossos caminhos e a verdadeira comunicação, não seria melhor que nos encontrássemos sem mediações? Mesmo que isso significasse um número menor de experiências, ou melhor, conhecimento sobre experiências relatadas? O jornalismo não deveria ser feito por todos? O jornalismo não deveria se transformar em uma arte calada?

Fanta Nazi-Laranja


A origem , no passado, de um produto pode definir etica e moralmente quem o produz no presente ? Pau que nasce torto se endireita? Consumir uma coisa que tenha nascido em um período excepcional e de forma desumana é contribuir para que essa "forma", mesmo terminada, ainda persista de algum modo? É defender alguma bandeira? Ou o consumo é apartidário e defende apenas o prazer pessoal, independente do mal social que causa ou causou o produto consumido?

Digo isto para falar de um refrigerante, geralmente lembrado por crianças: a Fanta Laranja. Docinha, borbulhante, com gosto de chiclete com suco e de coloração, obviamente, alaranjada, ela ilustra perfeitamente a natureza macabra das teorias da conspiração. Sua aparência ingênua esconde um passado mórbido.

Segunda Guerra Mundial. Eua entram na guerra. A Coca-Cola , americana, não poderia mais comercializar na Alemanha nazista. Não por querer, mas por ser contraditório demais declarar guerra a um país e manter as relações econômicas, embora uma corporação não tenha tantos vínculos atrelados a estados e nações , com o país que se guerrea (claro que esse caráter multinacional e flutuante não existia na época, até porque foi uma independência cravada gradualmente através dos anos).

Resumo da ópera, a Coca perdia um bom mercado. Lembrando que a Alemanha se recuperava de uma bela crise econômica-bélica, crescia a uma taxa média anual de 9,5%, a uma taxa de crescimento da indústria de 17,2%, crescimento demográfico , consumo público com um aumento de 18% com relação a década anterior, além de ter uma Áustria anexada no pescoço.

Solução? Pensar eticamente? Não. Criar um produto que não se associasse à Coca e ainda tivesse a ver com a cultura do mercado consumidor desejado, no caso, o alemão. A laranja dava nas montanhas, o nome vinha da palavra "fantasia", "imaginação", vendia-se como um produto alemão, mas com auxílio financeiro e logístico da coca americana. E assim ela se criou, se espraiou para centenas de países, tem o Brasil como maior consumidor, e pulverizou seu passado assassino.

Mais do que um produto, a Fanta ajudou a patrocinar as ações nazistas (e americanas, contraditoriamente), ou seja, matou gente. Consumi-la é uma ode a esse passado? Consumi-la é concordar com os ditames nazistas? Um produto, além de não ter raízes físicas e emocionais, não tem história? Comprá-la é dar dinheiro pra quem não se importa com o que há de humano no mundo, só interessando o lucro? Se não agora, em um futuro possível?

Sei lá.

terça-feira, 28 de agosto de 2007

Biocombustíveis e o Brasil


SOBRE PERGUNTA BIOCOMBUSTÍVEIS E RELAÇÃO COM MEIO AMBIENTE
* Paulo Renato Porto (geógrafo)



"A preocupação em relação ao uso de combustíveis fósseis não se restringe só à questão do carbono, mas também diz respeito ao uso indiscriminado de fontes de energia não-renováveis. De qualquer forma a questão do "sequestro de carbono" pelas áreas florestadas está em alta no momento, sendo, inclusive uma opção muito rentável para grandes empresas, o que é interessante também para quem quer trabalhar com isso. É óbvio que é preferível uma grande área de floresta do que um canavial gigantesco, que desgastaria o solo, prejudicaria a biodiversidade, além de estar sujeito a diversas pragas, cujo controle se daria através de insumos químicos altamente prejudiciais ao solo e ao lençol freático.


Hoje em dia , sabe-se que a floresta pode oferecer serviços ambientais valiosíssimos (inclusive monetariamente) como: extração de recursos alimentícios, farmacêuticos, estéticos, produção de lenha e madeira, climatização, otimização dos recursos hídricos, utilização para fins turísticos e prática de diversos esportes, além de ser um banco genético muito importante.
Enfim, as florestas estão entre as principais riquezas de um país, o que coloca o Brasil numa posição preponderante, oferecendo oportunidade para ações pioneiras em nível mundial. O problema é explicar para os nossos governantes, cheios de ganância, ignorância e inépcia. Enquanto isso, a Amazônia vai sendo derrubada a passos largos, a soja já invadiu o Cerrado e da Mata Atlântica original restam 7%. O próximo passo - para o qual o Lula acena com veemência, para não dizer abana o rabinho - é destruir a Caatinga para plantar cana e vender álcool para os Estados Unidos.


O assunto é de uma ordem de grandeza que vai ficar difícil comprimir em algumas linhas. A questão energética é uma problemática mundial que toca em diversos pontos delicados e muito variados tais como: desenvolvimento nacional, soberania nacional, padrões de consumo, utilização dos recursos naturais, enfim, é uma questão que envolve inclusive guerras, como todos sabemos (vide Oriente Médio), ceifando muitas vidas humanas, vegetais e animais.
A princípio, todos nós seres humanos dependemos totalmente dos recursos naturais, da menor à maior escala. A questão é vital: como utilizar esses recursos, a fim de garantir a sobrevivência da espécie? O que é necessário para a sobrevivência da espécie? Na verdade, falta-nos a percepção de que a vida humana é possível graças a um sistema infinito, altamente complexo e delicado, uma conjunção de fatores muito difíceis de estimar que forma a "Gaia", o organismo singular que chamamos de Terra.


Na minha opinião, o ser humano, historicamente, é ainda um bebê que quer mamar no peito a vida toda. Há um cálculo que diz que se a existência da Terra tivesse um ano, o ser humano apareceria no dia 31 de Dezembro, às 23:45 hs.


Voltando à questão enérgética: não há um consenso sobre a "melhor" opção energética para o nosso país. Pelo contrário, há discussões intensas sobre esse assunto, envolvendo órgãos e interesses múltiplos. Sabemos, por exemplo, que o compromisso do Lula é com o desenvolvimento econômico, mesmo que esse seja muitas vezes escamoteado atrás do conceito tão alardeado quanto indefinido e subjetivo de "desenvolvimento sustentável". Por isso, quando Marina Silva quer barrar a construção de uma hidrelétrica, ela entra em conflito com o presidente, que vê isso como uma forma de barrar o "desenvolvimento". Na verdade, isso é o que mais acontece: desenvolvimento versus meio ambiente.


Uma questão é factual: precisamos de energia elétrica. Outra é conceitual: quanto precisamos?


Na minha opinião, a questão deve ser resolvida de forma multilateral: o Brasil é um país extenso e deve aproveitar as potencialidades energéticas de cada região. O Nordeste, por exemplo, é rico em insolação e ventos. Já temos aí duas opções energéticas interessantes. Nosso litoral é bastante extenso e já está em desenvolvimento a utilização da energia das marés. Além disso, as grandes hidrelétricas, que inundam áreas extensas, cobrindo florestas e criando problemas sociais (como remoçaõ de comunidades inteiras) já não são necessárias. Os chamados "Grandes Projetos" do Brasil, na verdade têm algo de megalomania e, principalmente, interesse financeiro de grandes empresários, em estrito e escuso vínculo com o Estado. Hoje em dia, há projetos de usinas de pequeno porte, que abastecem localidades específicas e geram emprego e renda para as mesmas. A energia nuclear é bastante interessante para países pequenos (como a Holanda, por exemplo, que tem 70% de sua energia baseada nessa fonte), o que não é o caso do Brasil, pois essa opção envolve riscos serísimos.


Já a questão dos biocombustíveis é interessantíssima. O problema é quando ela toma proporções de "milagre" ou "salvação nacional", voltando-se não para a solução energética, mas sim para a solução econômica, baseada na exportação de nossos recursos naturais, coisa que acontece desde Cabral. Essa posição subserviente é que me incomoda, pois mantém o status quo de dependência e exclusão social. O que os nordestinos ganhariam das enormas divisas geradas pelo àlcool produzido em seu território de origem? Com certeza a exploração do trabalho (quando não o trabalho escravo) e a destruição de seu ambiente natural para a produçaõ extensiva (praticamente uma plantation).


Não se enganem: a questão é complexa e exige uma reflexão não só em nível nacional, mas também em nível pessoal: o quanto custamos para o planeta? O quanto custa para os recursos naturais e humanos nosso desejo de trocar de carro todo ano, de celular assim que aparece um modelo mais novo e bonitinho, de levar meia hora no banho por puro capricho e conforto pessoal, de usar um tênis que escraviza milhares de taiwaneses?


Enfim, é muito fácil ficar no discurso bonito e criticar as ações do Governo, essa entidade quase extra-terrestre.


Refletir sobre nossos hábitos, desejos, nossa forma de viver e se relacionar com o mundo, ah, quero ver quem tem coragem.


O desafio está lançado. "

terça-feira, 7 de agosto de 2007

CARTA ÀS COPAS DAS ÁRVORES

Por Bruno Moreno


"Fiquei com vergonha de mim. De mim ao mundo. Acho que desde pequeno sinto essa vergonha. Acreditava que tinha um olhar baixo pra não encarar as copas das árvores. Não por ser menor, mas por sabermos, no momento em que encarava seus troncos eternos, que, mesmo magro e fraco, miúdo de tempo ainda, seria eu um homem invejoso e bêbado, mandado por homens invejosos e bêbados, a roubar invejosa e bebadamente suas copas do sol. Então inventei de ser biólogo acreditando se tratar de virar um mago que lidava com sapos. Acreditava eu que os sapos regulavam a temperatura, os ventos e as direções das águas do mundo. E eu, como mago de sapos, iria devolver a naturalidade das coisas às árvores e às coisas. Mas fui dar de ver demais o homem e me esqueci no que há de homem no mundo. Desapercebi do tempo, do tempo que passava e aquele que fica pendurado na nossa cabeça, dando presentidade aos anos e aos futuros. Fui me apaixonar de mim com relação aos outros e me apaixonar de imagens de outras meninas. Então queria ser mais homem aos homens por paixão, por não ter algo mais pra chamar e por ouvir de minha avó que era coisa ruim de sentir. Digo isso porque, no momento que larguei os sapos e as copas das árvores até a hora em que me perdi no homem, fui menos feliz. Não existe mago de gente, como existiu o de sapos, porque os homens não têm relação com o mundo. Pelo menos dizem e agem como se não tivessem. Falam muito e fazem muito por si mesmos. É por isso que tenho vergonha de mim. De mim ao mundo. Mais agora que não sou mais menino e caminho a passos rápidos, desde quando acordo até quando acordo, para me tornar invejoso e bêbado. Inveja porque percebi que não existe mago de homens não porque a gente é bem melhor que o mundo. É porque não somos bem melhores que o mundo. E, da gente, ele não se regula pra nada. Ao contrário dos sapos, que precisam de um mago, porque sapos controlam o tempo e as coisas. E bêbado porque somos sós e, por não fazermos parte do mundo, tentamos não fazer parte de nós mesmos a todo custo. É uma solidão de tristeza e silêncio frio. Não é como as copas das árvores, que se preenchem de sol e pássaros, de chuva e vento, de dias e noites, de liberdade, mesmo presas a um tronco duro e marrom, como o que encarava quando criança e tinha vergonha de encará-lo também porque um dia seria um homem invejoso e bêbado a perguntar onde estava a graça em não ser homem e não entender a gratidão de um tronco duro e marrom que abastece e sustenta as copas de uma árvore eterna, de tronco eterno. Fiquei com vergonha de mim ao mundo e desejei não crescer mais para não ser homem invejoso e bêbado. Desde quando era criança e tinha vergonha das copas das árvores.

Que um dia eu saiba acreditar que posso ser um mago de sapos. Que eu possa devolver a naturalidade das coisas às árvores e às coisas. Mesmo com os olhos baixos de eternidade, que um dia vire um mago de gente. E possa encarar os homens do mundo. Com eternidade, presentidade e mundo."

terça-feira, 10 de julho de 2007

Filosofia à machadada

Por Fânia Rodrigues

A filosofia a machadada é uma forma de se chegar ao conhecimento através de uma espécie de tratamento de choque, que na maioria das vezes dá certo.
São como gotas de “verdade” que parece serem injetadas direto na veia de uma forma que você, mesmo não querendo, jamais vai ser o mesmo, nem olhar o mundo da mesma forma depois de, por exemplo, ler um livro de Friedrich Nietzsche.

Embora o escritor alemão apresentasse algumas anomalias mentais e mais tarde considerado pela psicanálise mentalmente perturbado, é bem verdade que suas idéias influenciaram radicalmente o pensamento da filosofia moderna. É leitura obrigatória para quem quer conhecer o pensamento crítico.

Segundo Éramos Rotterdam, autor de Elogio da Loucura, considerado um dos 100 livros que mais influenciaram a humanidade, existe uma ligação muito íntima entre a loucura e a genialidade.

Lombroso, um médico italiano, do século 18, que ficou mundialmente famoso por seus estudos e teorias no campo da relação entre características físicas e mentais, também estabeleceu um paralelo entre o gênio e a loucura.

Mais tarde o assunto foi mais profundamente estudo por médicos e psicanalistas e até Freud se interessou pelo tema. Uma rápida visita aos livros de história nos mostra como é estreita a linha que separa a genialidade da loucura.

Muitos lampejos geniais foram a princípio recriminados como produto de um cérebro doentio. Hoje, porém, ninguém mais duvida da saúde psíquica de tais personalidades, como Darwin (teoria da evolução) e Van Gogh.

Mas com loucura ou sem loucura devo dizer que Nietzsche merece ser lido pelo menos, para dizer (se for o caso) que não concorda com uma vírgula do ele escreveu, mas pra isso uma pessoa vai ter que ter lido uma porção de coisas, porque tem que saber o que está lendo e não apenas dizer se é bom ou ruim, mas como e porque você chegou a essa conclusão.

terça-feira, 19 de junho de 2007

Visões Periféricas?


por Bruno Moreno


Um evento no Rio de Janeiro foi pioneiro e mereceu toda a atenção da sociedade civil. Mas passou desapercebido. O Festival Visões Periféricas acabou essa semana e foi organizado pela Ong Observatório de Favelas. Mostrou a produção audiovisual dos locais em desvantagem social, com películas de cineastas oriundos de escolas e oficinas populares de comunicação e cinema de todo o país. A idéia era inverter um fato que "comemora" mais de 100 anos : mostrar o olhar da periferia sobre a própria realidade.


Acontece que pouca gente viu e se importou. Acontece que esse movimento vem ocorrendo lentamente, em algumas luzes pontuais, discutíveis e polêmicas, mas que não apresenta um destino para se comemorar . Falcão - Meninos do Tráfico, pode ser considerado o ápice e o início de um filme quase puramente da favela. Deu um baque, que durou o tempo do fogo de duas palhas. Seguiu-se uma moda global disso. Cidade dos Homens, Central da Periferia, as spice girls pobres Antônias. Independente de qualquer crítica, foi a primeira vez que essa presença maçiça dos locais ditos como "informais" apareceu como parte do cotidiano da cidade, não só no samba, mas em formas estruturais, urbanísticas e de cultura. Em formas de imagens. Mas parou por aí. O que se seguiu, e paralelamente a isso, foi que a periferia foi mostrada com festa demais. Diretores ganharam dinheiro com os pobres (Cidade Baixa, Cidade de Deus, Amarelo Manga), Cacá Diegues teve sua carreira ressuscitada ao se tornar o paladino cinematográfico do pobre, acadêmicos adotaram cada um a sua favela nas universidades públicas e particulares. Mais: ter um projeto audiovisual virou coqueluche orçamentária nas Ongs e quase uma exigência dos patrocinadores dessas organizações. Críticas à parte, ainda era um festival para se ver.
A idéia de se contar a própria história é magnifíca. Ajuda na transformação da estigmatização histórica que a periferia sofre. Desde tempos do Cinema Novo (Sim!), Rio 40graus e Pixotes da vida. É a revolução midiática que deveria ter acontecido, mas ainda é absorvida pelos que detém o poder de transmissão. E transmitem como querem. E esses não moram em barracos. Além disso, o novos possuidores das câmeras estão se subjugando aos ditames da elite branca (sim!) cinematográfica. Digo objetivamente que a forma de contar essa realidade é manipulável, assim como manipulável são as aprovações dos patrocínios. É preciso cuidado no jogo do toma lá da cá para não se perder os fins, já que os meios desviaram-se a princípio.


O Festival Visões Periféricas teve um grande valor. Mostrou que as coisas estão sendo feitas. Em quantidade e qualidade. Pena, novamente, que tenha servido para se afagar a cabeça do fudido e para a senhora madama dizer "que bonitinho o que ele fez". Valeu para marcar a existência de algo que está sendo sutilmente redefinida em favor das mesmas pessoas que fabricaram as visões errôneas e estereotipadas de que querem fugir as lentes atuais da periferia. Mesmo que quase ninguém saiba, tenha visto ou veja a realidade social que se afigurou há mais de 100 anos. E que ainda não foi bem contada.

quarta-feira, 13 de junho de 2007

A SOLIDÃO DA RUA GUAPENI




Por Henry Galsky


A placa de um azul um tanto desgastado anuncia em letras brancas contrastantes: Biblioteca Popular. Mas poucos são os passantes que levantam a cabeça para lê-la. Imersos em realidade cotidiana, o anúncio se ergue solitário e silencioso, como estátua de bronze, na esquina da Rua Guapeni, quase em frente ao que já foi a Mesbla.

Por si só, a rua diverge da confusão da Conde de Bonfim, principal e famosa via com que a Guapeni se encontra na altura da placa. Como se esta não existisse, os pedestres seguem em direção às atrações óbvias da rua principal e sequer desviam o olhar. É como se o supermercado, a academia, o hortifruti, a loja de móveis, o curso pré-vestibular e o transporte público ordenassem "sempre em frente!".

Poucos são os que se aventuram a entrar na Guapeni. A esta hora da manhã, o trabalho não pode esperar e ela está, mais uma vez, vazia. O guardador de carros é o solitário imperador e por isso mesmo olha com certa estranheza quem passa. Filetes de grama crescem entre os paralelepípedos. Pequenos prédios, de não mais de três andares, formam a maior parte das construções.

Há casas que se transformaram em comércio, como o curso de inglês que não pretende concorrer com as grandes empresas do setor, a creche com suas paredes coloridas infantilmente, consultórios de dentistas e algumas botiques para noivas. Tais lojas já recebem clientes, na ansiedade do matrimônio. Afinal, o amor não pode esperar. Costureiras caminham de um lado a outro, à procura da melhor medida, do melhor decote, do melhor tom para a noite mais importante das vidas dessas moças.

A chuva da noite anterior e o céu negro insistente que cobre a montanha ao fundo, contribuem para dar à Guapeni a impressão de região serrana. O silêncio permite ouvir o passo apressado da mãe que acompanha a filha adolescente ao curso de inglês. Tudo isso às margens da Conde de Bonfim.

As casas da rua guardam certa semelhança. Muros baixos protegem a entrada. Grandes varandas adornadas por arcos e pilastras de pedra. Piso vermelho. Em algumas varandas, a presença confortável de cadeiras de balanço de madeira ou ferro. Uma casa azul-piscina é uma das últimas construções da rua, quase em frente à biblioteca. Num cartaz preso à parede, a saudação: "bem-vindo ao mundo dos golfinhos". Os animais sorriem – se é que isso é possível. "Essências florais, minerais, marinhas...". As reticências insinuam que há essências de outros materiais.

Uma mulher abre a porta, provocando com isso reverberação da cortina sonora. Sou convidado a entrar. Ela crê que estou interessado em arteterapia, na oficina de "alimento vivo" ou na palestra sobre florais do nordeste. No interior da residência, tapetes artesanais, uma secretária e música que soa como Beto Guedes, 14 Bis, ou alguém do Clube da Esquina. Agradeço o convite e por educação acabo me inscrevendo na palestra.

O portão se fecha com um estampido metálico. Do outro lado da rua, vasos de plantas cobrem a fachada de mais uma casa sustentada por pilastras de pedra. A porta está aberta e convida a entrar. A cortiça do lado de fora está coberta com cópias de capas de livros. São os lançamentos do mês disponíveis na Biblioteca Popular da Tijuca. Ou melhor, Biblioteca Popular Marques Rebelo, em homenagem ao escritor Edi Dias da Cruz. Pode soar estranho, mas é possível explicar a aparente confusão. Marques Rebelo era o pseudônimo do escritor. Ironicamente, tornou-se mais famoso que seu nome real. O grande sucesso do autor foi A Estrela Sobe, livro lançado em 1939 que narra a ascensão de uma jovem suburbana ao sucesso como cantora de rádio. Se escrito hoje, ela se tornaria, provavelmente, uma participante do Big Brother e posaria para a Playboy.

Na cortiça, além das novas aquisições, os cursos oferecidos. A gama de opções é enorme: psicanálise, espanhol, francês, violão, matemática, reiki. Do lado de dentro da biblioteca, silêncio. Logo na entrada, um segurança particular oferece um grande livro de capa preta aos visitantes que desejarem assiná-lo.

Os cerca de 15 mil livros estão divididos por áreas de interesse. Há oito prateleiras dedicadas somente à literatura norte-americana. O cheiro de livro é forte e a luz, intermitente. No salão de leitura, ventiladores de pás de ferro e o recém-adquirido ar-condicionado deixam o clima agradável aos 14 leitores. Eles estão absolutamente imersos em seus livros e jornais.

Um pequeno corredor leva aos fundos da biblioteca. Lá estão a administração, a sala infantil e a audioteca, que já conta com mais de 300 fitas para deficientes visuais. O corredor está decorado com fotos de todos os presidentes da República. Todos mesmo. Campos Sales, Rodrigues Alves, Nilo Peçanha...

Josefa Padrão Moutinho, a gerente da biblioteca, explica tratar-se de uma exposição itinerante, uma parceria com o Museu da República.

Josefa é a administradora geral e responde à Coordenadoria de Bibliotecas da Prefeitura do Rio. Seus óculos redondos, saia longa e meia-idade, colaboram para que se enquadre no estereótipo de professora primária que povoa o imaginário coletivo. Mas ela é mais do que isso. Além de professora, é bibliotecária e assistente social. Sua mesa está coberta de pastas, livros e papéis, muitos deles recortes de jornais velhos. Uma máquina de escrever ao lado é a armadilha para um flashback sonolento aos tempos de escola.

Desde 2004 na biblioteca, Josefa é a supervisora dos 11 funcionários – sendo três deles terceirizados – que trabalham no local. Tenta se esquivar, quando a organização da biblioteca é elogiada. "Tudo o que foi feito é com o aval da diretoria", diz, após pequena pausa e a tentativa de esconder o sorriso.

Ela conta que todos os dias recebe mais de 120 leitores. Nos últimos tempos, os livros mais requisitados têm sido O Código da Vinci e Harry Potter. "Houve um caso de um advogado que leu todo o Harry Potter aqui", conta.

"Muita gente vem estudar para os concursos públicos. Fora isso, muitos de nossos freqüentadores não moram na Tijuca, apenas trabalham no bairro", explica.

Josefa também gosta de ler. Apesar disso, pensa alguns segundos antes de confessar que o blockbuster O Código da Vinci foi sua última leitura. "Mas gosto muito de Descartes, Platão, filosofia e literatura brasileira", emenda rapidamente.

Sentado diante do computador que provê acesso gratuito à internet, o analista de processos Pedro Leonardo Albuquerque dos Santos, de 28 anos, freqüenta a biblioteca nos finais de semana – sim, ela abre aos sábados e domingos. "Antes de trabalhar em meu novo emprego, vinha aqui todos os dias. Gosto de acessar a internet, ler jornais e livros. O último que levei pra casa foi a Constituição porque precisei dela para um concurso", diz.

Antes de sairmos, pedimos a Pedro que pose para uma foto, ao lado de um livro, de forma a ilustrar a matéria. Entre os 15 mil volumes disponíveis, ele rapidamente escolhe o best seller de auto-ajuda Quem Mexeu no Meu Queijo. "Esse livro é muito bom", garante sorrindo ao lado da capa azul escura.