sábado, 12 de julho de 2008

Grito de Córdoba é mais vovô (reforma universitária faz 90 anos)

foto roubada daqui e cuja explicação é "Alunos da Universidade de Córdoba festejam a Reforma universitária de 1918"

C
omo o blog gosta de uma data redonda, lá vai mais uma. Nessa zona que vai de junho a setembro é muito importante para lembrar ações universitárias históricas. E elas se deram na Argentina, mais notadamente em Córdoba , em 1918.

Há 90 anos atrás, o presidente de la nación era Hipólito Yrigoyen, do partido radical, que teria um papel importante nisso. Só pra entender , o partido radical (e Hipólito) não era tão radical assim.

Imagine uma Argentina no final do século 19 e início do 20 sem o sufrágio universal, com latifundiários ricos e políticos controlando as eleições e a economia (basicamente agroexportadora). Com o catolicismo e a manha européia civilizante progressista quase nobre e xenófoba dominando o terreiro. Ao mesmo tempo um país que havia conquistado sua liberdade na porrada, com a marra criolla de mártires como San Martin, Belgrano, que culminou em gerações que tinham sangue europeu, mas também aborígene e, o mais importante, tinha aprendido a lutar por um país que viram construir. Junte isso a melhor organização operária-sindicalista da América Latina, que começava a aprender com os movimentos populares na Rússia e França. Agora volte lá pra cima e faça a conta, levando em conta que aqui reinava o acordo comercial clássico com a Inglaterra: te dou o leite, vc me dá a mamadeira (exportação de produtos agrícolas e importação de industrializados). Quem ganhava a mamadeira eram poucos. E a galera toda ficava sem mamar. Não era de se esperar, a porrada começou a cantar.

A partir daí começaram a ver que a exploração e manipulação eleitoreira descarada davam mais prejuízo que lucros. Os pobres já tão começando a invandir minha casa, a favela já tá descendo. Os radicais entraram aí nesse nicho de mercado: pediam leis trabalhistas mais justas e eleições universais e honestas e se tornaram uma opção , oposição politicamente válida para essa nova realidade (várias vezes tomaram províncias e derramaram muito sangue após embate com as tropas governistas). Mas , aí é que é a patota, não as pregavam como revolução social, igualdade de classes ou que possa parecer: o voto e essas leis apenas abrandariam as revoltas, já que o líder do país seria um líder eleito pela maioria, de forma clara e transparente.

Nosso querido Hipólito surgiu aí e se destacou na peça. Em 1916 foi eleito na primeira eleição livre para todo o país (a lei do sufrágio universal se chama lei Saenz Peña, de seu antigo e moderado adversário político, o Roque, que morreu em 1914). Embora sem a intenção de botar pra quebrar, foi visto com muito receio pela elite, gerando tipos de comentários preconceituosos
e arrogantes típicos da família, tradição e propriedade. De fato, sua entrada trouxe muitas coisas boas pra galera, como a luta pelas leis trabalhalhistas, um pouco mais de divisão da mamadeira, a ida da classe média e dos imigrantes ao cenário político e uma política internacional que mandou os Eua se ferrar. Por outro lado, usou e abusou da força contra os próprios trabalhadores que jurou defender, em massacres contra manifestações e greves e sua conexão comprovada com fascistas (que, no futuro, iriam dar dor de cabeça). De qualquer maneira, a elite, que ainda dominava, tinha um presidente que gostava um pouco do cheiro dos pobres e de certas idéias modernas demais.

O cenário era mais ou menos esse quando um grupo de estudantes da Universidade de Cordoba mudou a história das universidades no país e foi grande inspiração para mudanças em outros. Como diz o nosso querido e incansável historiador Felipe Pigna em seu livro "Los mitos de la historia argentina", eram os filhos da mamadeira que, em sua maioria, podiam entrar na universidade. Isso foi até a chegada do radicalismo ao poder, quando a classe média teve mais espaço e respaldo para buscar a formação para ascender socialmente. Mas antes de democratizar o pandeiro, tinham uma estrutura bem fortificada pra raspar. Como diria Pigna, "o sistema universitário vigente era obsoleto e reacionário. Estava décadas atrasado. Na universidade de Cordoba, a influência clerical era imensa e os calouros, independente do credo, tinham que jurar sobre os santos católicos. Um exemplo do atraso do programa de filosofia: aprendiam sobre as regras de como mandar em um servo".

A bomba estorou no final de 1917, quando o reitor, sem dizer lé com cré, mandou acabar com o internato no Hospital das Clínicas. Os estudantes de medicina, direito e engenharia se juntaram, se mobilizaram, reclamaram, pediram coisas, não foram atendidos e em Março declararam greve geral dos universitários. Em abril, a universidade foi fechada. E aí o comitê estudantil foi ficando mais sério e começou a reclamar com o ministério da educação, propondo mudanças curriculares, demissão do reitor, troca de professores, modernização de estrutura e autonomia. Essas idéias foram se espalhando pelo país, até que chegaram nos estudantes de Buenos Aires. Comitês e federações universitárias foram criadas e começavam a fazer bastante barulho, para horror da elite social reacionária e católica.

A coisa ficou tão forte que a direção da greve de Córdoba teve uma reunião com o nosso querido Hipólito que, por sua vez, deu uma carta branca, azul, rosa e cheia de purpurinas aos estudantes dizendo que "seu governo pertencia ao espírito dos novos tempos e que se identificava com as justas aspirações estudantis". Depois disso, mandou um interventor federal ver qual era do caô lá em Cordoba. O cara viu e voltou falando as piores coisas pro presidente. Em 6 de Maio, Yrigoyen dá um decreto pedindo novas eleições lá. Muitos sacerdotes-professores semi-deuses consideraram isso um afronte e pediram demissão. E pela primeira vez na história votaram pelos cargos docentes democraticamente. Deu na cabeça a centena e o milhar: a maioria dos professores eleitos eram do agrado dos comitês estudantis. Só que ainda faltava o reitor. Os universitários apresentaram o seu candidato mas, após uma manobra dos reacionários católicos, quem ganhou mesmo foi um perpetuador da situação. Acontece que os estudantes tinham sangue nos olhos e botaram novamente pra quebrar. Quebraram a universidade, a invadiram e declararam a "greve geral, a revolução universitária e a universidade livre". Mais que isso: conseguiram o apoio dos estudantes em Buenos Aires, assim como do movimento dos trabalhadores, elite intelectual e algumas organizações políticas da capital. No final de Junho, escreveram o Manifesto Liminar, que foi dirigida aos "homens livres da América do Sul" e era um clamor apaixonado que evocava a Bolívar, a Zapata e a Lênin e dizia que a revolução das consciências estava sendo feita, assim como o rompimento com uma sociedade monárquica, monástica e tirânica. Em agosto e setembro, mais manifestações, agora com a adesão dos movimentos sindicais. O comitê, além disso, tomou a universidade, assumiu interinamente sua direção e declarou que ela estava fechada indefinidamente. A elite reacionária cordobesa, que ainda era imensamente poderosa, reagiu com a porrada policial. A bagunça tava armada. O Hipólito , então, mandou outro interventor para resolver a mamona. Dessa vez foi o próprio Ministro, José Salinas, que foi , reorganizou as coisas, aceitou a demissão do reitor e do resto dos professores anti-modernidade, reabriu o Hospital das Clínicas, chamou novas eleições, botou reformistas na cabeça da universidade e, dessa vez sem mutreta, viu um reitor "estudantil" assumir o trono. A coisa se espalhou para os países vizinhos (1919 no Perú, 1920 no Chile, 1922 na Colombia, 1923 em Cuba, 1928 no Paraguai e em todo o continente nos anos seguintes).

Pigna conclui: "o movimento universitário reformista renovou os programas de estudo, possibilitou a abertura da universidade a um número maior de estudantes, promoveu a participação dos mesmos na direção das universidades e impulsionou uma aproximação das faculdades aos problemas do país. Implantou a co-direção da universidade pelos graduados, docentes e alunos; a liberdade de cátedra e a autonomia".

O historiador chileno Gustavo González diz que o Grito de Córdoba, como foi conhecida essa história, pode ser considerado o ato de fundação dos manifestos estudantis latinoamericanos contra sistemas autoritários ou modelos obsoletos. Pode-se ir mais além e dizer que o "grito" foi pioneiro na reforma universitária no mundo todo, já que a Europa (lembrando que estava no fim da devastadora primeira guerra) demorou , em alguns países, muito tempo para sair de um regime universitário medieval. No Maio de 68, de fato, vários estudantes franceses (e até um editorial do Le Monde) disseram que o que eles estavam fazendo já tinha sido iniciado 50 anos antes na Argentina. Pouca merda é bobagem.

Enfim, fica um post gigante , mas acho que legal, sobre uma luta válida, suada e cujos resultados transcenderam os tempos e ainda inspiram.

As universidades do Brasil precisam dar seu grito também. É só os estudantes pararem de fazer turismo barato em encontros e fumarem maconha nos centros acadêmicos. Já seria um bom meio passo.

Voz maneira sobre o grito de cordoba

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