terça-feira, 5 de agosto de 2008

Dois dias de solidão

Macondo é a cidade onde se desenrola a trama do livro Cem Anos de Solidão, de Garcia Marquez. Logo nas primeiras linhas da obra, vemos um Coronel Buendía diante de um pelotão de fuzilamento e lembrando de sua infância, quando seu pai o levou para conhecer o gelo. Mais a frente descobrimos que se trata de uma feira repleta de ciganos, mágicos, e gente das arábias que traziam sempre as inovações e invenções , reais ou fantásticas, do mundo moderno. Essa feira foi criando raízes e sendo fundamental no desenvolver imaginário da família Buendía e seus 100 anos de história.

Mas o que tem isso a ver com o que eu vou dizer?

Incomodou, nessa última visita do Lula à Argentina, o séquito de empresários que vieram junto com ele e que deram declarações perigosas e de contextos vários , já conhecidos, e que desembocam em uma só coisa: desigualdade e perigo à democracia. Segundo o Clarin, por exemplo, um diretor da indústria paulista afirmou que o melhor para a argentina é não deixar o Estado interferir na economia. O presidente da Fiat disse que os países que seguem as regras da economia internacional, sempre melhoram. O Lula mesmo bateu na tecla dessa integração econômica, que a invasão de empresas brasileiras não é nociva para a Argentina e que o dinheiro tem que circular entre os países.

A invasão da feira mágica-moderna em Macondo teve um cunho econômico inegável. Os ciganos vendiam porções mágicas, os das arábias vendiam vitrolas e todos ganhavam dinheiro. No entanto, ao vermos o desenrolar da história, é inegável que o que cria laços e afeta o imaginário e as atitudes dos moradores da cidade com essa feira é o caráter simbólico dos inventos, a característica irreal do que é mostrado, os costumes do estranho, o onírico, a descoberta. Tanto, que ela deixa de ser mambembe e se estabelece no cotidiano local.

O problema, ao meu ver, de um intercâmbio e acordos carregados de um tom comercial, e apenas comercial, é que o dinheiro caminha na direção das limitações do homem: anda por interesse, por sobrevivência, quase nunca por humanidade. Entra e sai com suas cifras , quase nunca com o símbolo. E é esse o cunho da conversa que estamos vendo há muito tempo entre os dois países. O argentino está vendo o brasileiro como matéria, não como descoberta e fantasia. O brasileiro está vendo o argentino como oportunidade financeira e não como povo. Simplificando: a troca que também deve ser feita, junto com a comercial e que estabelece vínculos além do dinheiro, além dos lucros e realmente criará o símbolo de uma região unificada (e não como dois vizinhos que formulam um discurso mas que, na primeira tempestade, cada um vai para sua barraca), é a cultural e a artística. A cultura e a arte são exatamente essas mágicas, esse mundo fantástico que fez das invenções ciganas e das arábias parte do cotidiano de Macondo, que despertou o imaginário do impossível e do improvável nas mentes dos Buendía e os fez entrarem num turbilhão de transformações e movimentos que mudaram a vida de todos. Além da língua, falta aos dois países o real reconhecimento de irmandade. E esse nunca se dá em uma relação de benefícios e trocas puramente materiais.

Além do lado macondiano da relação, é histórica, pelo menos na Argentina, a relação escusa de empresariado e democracia. Foi por causa dos interesses empresariais e petroleiros estrangeiros (e de algumas famílias locais) que se formou a tradição de ditaduras, iniciada em 1930 e finalizada mais de 50 anos depois. Esse séquito de empresários acompanhando o Lula, me lembrou a formação da “primeira ditadura” argentina, a de 1930, com o general Uriburu (dono de terras e acionista de empresas), que entre seus ministros ( na maioria civis e “liberais”), 80% eram diretores de alguma empresa de petróleo, advogados de empresas de petróleo, donos de fábricas, acionistas de grandes empresas ou tudo isso, junto. Me incomoda o fato de, historicamente, sabermos que o capital e o liberalismo caminham para o interesse de pouquíssimos, perseguindo desejos individuais, raramente do povo e da maioria. E o discurso é sempre esse, que o financeirismo tem a inteligência suficiente para não ter dedo do Estado. Acontece que o Estado representa os que, na hora do aperto, são as principais vítimas do abandono e repugnância “liberal”.

Algum esforco está sendo feito, vide a presenca brasileira nas semas artísticas ou nos grandes eventos artísticos. Ainda sim a entrada é mais espetacular que real, que de base, de conversa e de trocas cotidianas.


Da próxima vez que o Lula vier, que traga professores, médicos, artistas, cientistas, que têm muito o que conversar e aprenderem uns com os outros. Que traga mais mágicos e uma certa dose de sonho e imaginação , que é o que falta ao dinheiro. Que é o que dá algum tom de humanidade a homens e mulheres com caminhos tao diferentes. Que traga Macondo, a cidade comum e ainda subterranea que existre entre Brasil e Argentina.


Um comentário:

Túlio disse...

muito bizarro ver o Brasil como investidor... e nao como pais para ser investido. Cada país tem o investidor que merece pelo jeito!