quarta-feira, 28 de maio de 2008

Um poeta que lambe as palavras



por Fânia Rodrigues (após encontro com)

Longe dos holofotes que geralmente estrelas de seu naipe atraem, Manoel de Barros prefere a pacata e doce rotina entre os pássaros do Pantanal, algumas de suas paixões secretas, e o mundo animado das palavras, ferramentas e matérias-primas de sua arte. Escrever, para Manoel de Barros, parece ser uma grande brincadeira.

Ainda quando eu era estudante de jornalismo, cismei em entrevistá-lo, mesmo sabendo que era avesso à imprensa. Consegui seu telefone através de uma conhecida que tinha o contato de um de seus filhos. Nunca achei que fosse tão fácil falar com o poeta, que tinha fama de incomunicável. Da primeira vez que liguei, sua filha atendeu e quando eu disse que queria falar com “senhor Manoel de Barros”, ela prontamente passou o telefone, sem nem se preocupar do que se tratava.
Ouvi uma voz fraca e trêmula do outro lado da linha. Como tudo aconteceu muito rápido, não estava preparada para falar com ele naquele momento e as palavras saíram com uma certa dificuldade.

– Boa tarde, senhor Manoel de Barros. Sou estudante de jornalismo e gostaria de conversar com o senhor sobre uma matéria que estou escrevendo a respeito de identidade cultural.


Ele primeiro advertiu-me por chamá-lo de senhor e depois respondeu, não menos original do que poderia se esperar de uma figura como ele:

– Mas 90% do que eu falo é mentira e o restante é inventado, então não tenho nada para falar. (diz despretensiosamente)


Eu já estava estudando um novo argumento para convencê-lo a me receber quando, creio que percebendo meu nervosismo, interpelou.

– Tudo bem, não vou negar a falar com você! Pode vir aqui em casa.

Simples assim! Anotei o endereço e no outro dia lá estava eu no horário combinado. E adivinha coincidência... Ele morava do lado do meu bairro. Fui caminhando para a entrevista.

Fui recebida numa grande sala, mas parecia pequena se comparada a grandeza do “poeta das inutilidades”, como ele mesmo costuma escrever.

Não gravei e não anotei nada do que conversamos naquela tarde. Ele estava por lançar seu último livro “Poemas rupestres”, uma referencia aos desenhos primitivos dos homens das cavernas, onde ele reinventa os significados das palavras num retorno ao velho Mato Grosso, onde nascera.

Depois conversamos sobre o processo criativo e, segundo ele, não existe um fator inspirador, e sua escrita flui sem grandes sacrifícios ou sofrimento. Um “arteiro” nato.

O tempo parece não existir para esse poeta ou, pelo menos, nao é como o nosso tempo, que é contado em horas. Existe um outro cronômetro, seu próprio tempo. Quando pergunto quanto demora para escrever um livro ou um poema, Manoel de Barros diz que não dá para medir. Arte não tem tempo.

– Manuel Bandeira, por exemplo, quando escreveu aquele poema “O cacto” no final ele dizia “era belo, áspero e intratável”. Quando escreveu , ele disse apenas “belo e intratável”, essa terceira palavra o “intratável”, ele demorou dez anos para encontrá-la, porque ele precisava da medida exata que exprimisse o que ele queria dizer, – e assim fica explicado o tempo e um pouco de Manoel de Barros.

Mesmo que fossem escritas em 15 minutos, não seria apenas isso. Como diz Carlos Heitor Cony, “são 15 minutos e mais a experiência de uma vida”.

Quando falamos a respeito do seu mais famoso título “Livro sobre nada”, finalmente entendo que o nada é nada mesmo. Não se trata do “nada” filosófico. É o nada de ausência de coisa mesmo. Na hora pensei: “como pode alguém escrever sobre nada? Não há o que escrever”.


Mas é justamente daí que vem a resposta em forma de poesia. Quando não há o que escrever, Manoel de Barros inventa. Tripudia em cima das palavras. E dança com elas. Um verdadeiro artesão, que tece com capricho e delírio.

“Um poeta que lambe as palavras e se alucina”. Sem pretensão, sem verdade. Apenas pela estética, pela arte e pelo amor à escrita.

– Sou como um cacto, com a exceção do “belo”, – brinca. Posso até concordar com o intratável, mas diante de sua doçura é impossível comungar com a idéia do áspero.

Depois daquela tarde, ver as coisas de uma outra forma, que muitas vezes não passam pela lógica e pela razão. Mas uma coisa é certa, Manoel de Barros sabe muito bem o que está fazendo. Ele faz na prosa, o que em literatura se chamada bricolage. Ao inverter a ordem de certos lugares-comuns obtém resultados como “chovia pelos cotovelos, mas Tião falava a cântaros”, como escreveu Mendes Campos, ou ainda "a quinze metros do arco-íris o sol é cheiroso", do poeta pantaneiro.

Embora não credite influencia de nenhum escritor específico, é bem verdade que Manoel de Barros nunca foi o mesmo depois que leu "Une Saison en Enfer", livro do jovem poeta francês Arthur Rimbaud, que chocou sua época com seu estilo rebelde e anarquista e pretendia atingir a transcendência poética.

Lenda viva

Formado em Direito, Manoel de Barros foi estudar no Rio de Janeiro ainda muito jovem. Conta que morava numa pensão, onde conheceu os amigos da Juventude Comunista. Contagiado pelo espírito revolucionário leu Marx e entrou para o Partido Comunista.


Na época, o país, governado por Getúlio Vagas, vivia um período de conflitos políticos entre o governo linha dura e ditatorial e os revolucionários comunistas, liderados por Antônio Carlos Prestes.

Foi nesse período que escreveu seu primeiro livro, que nunca foi publicado. O único exemplar do livro foi levado por policiais que entraram na pensão para prender ele e os amigos comunistas. A dona da pensão ficou com pena dele que na época tinha 18 anos e pediu que o levassem. Na tentativa de impedir a prisão contou aos policiais que ele até tinha escrito um livro. Foi então que os policiais desistiram de prende-lo mas levaram consigo o livro. Quando pergunto se ele não lamenta terem levado logo seu primeiro livro ele prontamente responde: “ainda bem que levaram. O livro era muito ruim. Foi um livro escrevi para Nossa Senhora”.

Manoel de Barros conta que ainda era do partido comunista quando seu líder, Luiz Carlos Prestes, foi libertado depois de mofar dez anos na prisão. Todos esperavam uma atitude contra o que os jornais comunistas chamavam de "o governo assassino de Getúlio Vargas." O ainda aspirante a escritor, correu para o Largo do Machado, no Rio, "ouvi Prestes dizendo “eu apoio Getúlio, o mesmo Getúlio que havia entregue sua mulher aos nazistas, sentei na calçada e chorei. Saí andando sem rumo, desconsolado. Rompi definitivamente com o Partido e fui para o Pantanal".

Nunca vamos saber se política perdeu um líder, mas a literatura, essa sim com certeza, ganhou o que Drummond já anunciara, “ o maior poeta brasileiro vivo”.

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