quinta-feira, 5 de junho de 2008

Se segura, malandro!

por Bruno Moreno e Rodrigo Brayner

Com os olhos embotados de lágrima e espanto, descobrimos o genial cinema brasileiro através de um filme que está completando 30 anos de seu lançamento. Trata-se da obra-prima "Se Segura Malandro".

É tarefa difícil , para quem não o conhece, dizer sobre o que se trata. Tentaremos. É uma mistura de absurdo com o absurdo da brasilidade. O nonsense do cotidiano brasileiro contado de uma maneira magistral, ao mesmo tempo cômica, inteligente, pastelão e triste. É um apanhado quase teórico do conceito da malandragem, da lei de Gérson, da passagem pelo acostamento dos brasileiros, da hipocrisia cidadã , imortalizados e tematizados criticamente por Hugo Carvana em suas obras.

O eixo principal do filme é baseado no programa de uma rádio ilegal, que dá nome ao filme, comandado por Paulo Otávio (Hugo Carvana) que mais parece parece um imperador de pijamas em seu esconderijo. É como se fosse uma espécie de malandro mais mórbido e vingativo. Uma segunda face do malandro Dino, eternizado por ele nos dois "Vai Trabalhar, Vagabundo" . O slogan da rádio é "sorrindo se chega mais fácil ao meio do inferno". E é "feito para todos aqueles que estão com a corda no pescoço — se você foi despedido pelo seu patrão, nos procure: se sua mulher lhe trocou pelo vizinho, não chore; nos procure que nós lhe arranjamos outra. Bom dia, seu Gonçalves, cuidado para não perder a hora! Vamos acordar, minha gente!".

A sua única repórter é Calói Volante (Denise Bandeira), que passeia pela cidade com uma bicicleta cheia de parafernálias narrando os acontecimentos locais e costurando as histórias do filme. Sempre fugindo da polícia, vai expondo de maneira cômica os acontecimentos. A rádio, além de contar o que passa, inventa coisas para botar ainda mais confusão na história. Como a promocao do Hotel Copacabana, que chamou a todos os mendigos da cidade a irem para frente do hotel pedirem um prato de comida, gritando a senha "Borboleta azul".


O filme também aponta seu canhão crítico para o cotidiano e mínimo. Em uma atuação inigualável de Lutero Luiz (que já havia nos brindado com seu talento em "Vai Trabalhar" como o bêbado que, junto a Pereio, protagonizou a cena da fuga do hospício, para nós, uma das melhores do cinema nacional), vê-se a história de Alcebíades, um funcionário exemplar de uma firma que, no dia que vai receber um premio por seus 30 anos de serviço, resolve expor toda a mediocridade e abuso que recebeu durante esse tempo (ao receber o relógio de ouro que o premia, seu chefe ao pegar do bolso, se lambuza com o brigadeiro que haviam deixado ali de sacanagem. O relógio vai todo cagado para Alcebiades. Uma mistura de humor “fácil” e critica embutida). Para isso, seqüestra o elevador da firma. É isso mesmo, o elevador (com a presença do eterno Wilson Grey como ascensorista). Acontece que, no decorrer da história, torna-se uma espécie de herói anti-capitalismo-rotina e , apesar de alguns reféns quererem sair, muitas pessoas passam a querer entrar em seu elevador “revolucionário” para fugir da loucura do dia-a-dia e sua firma passa a receber jornalistas (incluindo a Caloi Volante) e multidões querendo acompanhar o desenrolar do sequestro. Um dos personagens que entra é o Presidente da Sociedade Brasileira de Neuróticos , que proclama Alcebíades como o rei dos neuróticos e transforma o elevador em um inferno maior ainda (atuação impagável de Henriqueta Brieba como uma velhinha inocente que sofre mais que todos).

O filme ainda é recheado de personagens geniais. Um deles é Zatopeck, o assaltante , interpretado por Claudio Marzo. Trata-se de um gatuno galã que assalta a mulheres usando seu charme e seu enorme 45. Além disso, está sempre vestido com roupa de cooper da Adidas (da Adidas mesmo). Por quê? Para a polícia nunca desconfiar por que está correndo.

A crítica social do filme fica mais clara com o núcleo "mais sério" da obra, representada pela relação de um intelectual de esquerda com a favela. O intelectual, economista, é Candinho, interpretado por Helbert Rangel. Ele e sua esposa precisam morar em uma favela para conseguir um cargo nas empresas de seu pai. Passa a acreditar mais ainda na mobilização das massas e de seu papel como líder intelectual para guiá-las e resolve ficar lá para sempre, pelo menos até operar a suposta revolução. Acontece que o tempo vai passando e ele passa a ser explorado pelas pessoas. Visto como estrangeiro e com estranheza, sua boa vontade é brindada com desdém, ironia e e os moradores abusam de sua santidade esquerdista. Em uma cena que resume muito do que pensamos sobre essa questão, seu pai, interpretado por Milton Carneiro (infelizmente apenas lembrado como o inspetor da Escolinha do Prof Raimundo), manda dar ou descer. Ou eles sairiam da favela imediatamente ou ele nunca mais daria para eles. Estariam "condenados" a viver na favela e serem pobres. O intelectual, adivinha, antes flamejante e cheio de vozes, abandona a comunidade.

Outro núcleo do filme é interpretado pelo casal Laurinha (Louise Cardoso ) e Romão (Paschoal Villaboim). Formam um casal de imigrantes nordestinos que tentam se virar na cidade grande. Ele visa sempre as pequenas armações, as mutretas. Ela tenta manter a sua integridade na vida difícil que passam a levar (diferente do sonhado quando saíram do Nordeste), embora trabalhe de stripper e massagista para conseguir uma grana. Acontece que a pobreza cansa e eles passam a roubar cachorros e devolver a seus donos. Com o dinheiro da recompensa, vão ficando ricos e acabam montado uma empresa com esse "serviço". Além deles, há um personagem muito felliniano, interpretado por um morto. Sim, um velhinho morto em uma cadeira de rodas (que morre após ter se excitado com sua "babá", a própria Laurinha) que vai sendo carregando por diferentes personagens, rodando pela cidade, sempre cruza com o curso da história e até arranja uma namorada, também uma velhinha de cadeira de rodas (mas viva).

O final do filme é uma sugestão clara , mas simples, eficaz e dá os créditos de maneira original. É quando se chocam duas supostas ambulâncias que levam loucos para o sanatório. Dos carros saem quase todos os personagens e o pessoal da equipe técnica. Tudo ao som de Feijoada Completa, de Chico Buarque (a trilha é quase toda dele, com a junção de músicas de João Bosco e Mário Lago). A harmonização perfeita para um filme único.

“Se segura malandro” infelizmente caiu numa espécie de esquecimento da arte brasileira (pelo menos os jovens já não reconhecem tanto). Esse esquecimento é acompanhado do pouco valor que se dá a Hugo Carvana como um pensador e realizador fundamental para que se entenda os movimentos de nossa sociedade. Dotadamente carioca, com um toque suburbano, quase Aldir Blanc na linguagem, Carvanão universalizou a malemolência dos malandros do país, os dotou de crítica, corpo e profundidade. Mostrou, através da única linguagem que o brasileiro culto e inculto parece entender, a do absurdo, que o único jeito é sorrir mesmo porque, como aponta o seu inesquecível programa de rádio, “já chegamos ao inferno”.


Grito 1: Pra quem quiser ver: é se ligar na programação do Canal Brasil, único lugar onde passa atualmente.

Grito 2: Quem tiver fotos em alta, vídeo etc, bota no youtube, divulga, reparta o pão. Não há nada sobre o filme nessa grande , e às vezes ínfima, Internet.



Um comentário:

Hilton Neves disse...

Genial! Sou fissurado em Se segura, malandro! e acho que foi na TVE ou Bandeirantes que o vi há uns 8 anos.
Parabéns pela análise e obrigado por partilhar.
[]s