quarta-feira, 18 de junho de 2008
Deus e o Diabo na Terra da Carne
A questão do campo na Argentina é tão forte, tão cheia de sutilezas envolvidas, tão grande por envolver quase todos os aspectos que regem uma sociedade democrática, que mais parece um corpo, quase se movendo com suas próprias emoções. Não sei se é privilégio dos tempos transmodernos, mas é algo complexa e, por isso, impossível de ser vista, assimiliada e criticizada em algumas linhas. Para isso, tentarei, no mais humilde dos entendimentos, falar um pouco a cada semana nesse blog. Até quando for esquecida e voltarem as notícias de assassinatos e pendengas rotineiras.
No entanto, antes da confusão é preciso falar do despontamento de duas figuras argentinas que estão se tornando quase míticas politicamente. Esse é o momento mais claro de ver como se formam esses personagens. E , mesmo caminhando em pontes diametralmente opostas, se encaixam , se alimentam, se transfiguram e resumem muitas questões, atuais e históricas no simples decorrer de suas ações, em si próprios.
Luis Delia e Alfredo de Angeli se parecem fisicamente, mas é só. O primeiro é visto como um defensor ferrenho do "crischnerismo" e das decisoes da presidenta. O segundo, é o homem que leva pra frente o reclamo do campo. O primeiro tem muita história política antes da paralisação do campo. O segundo, apesar de ter feito outras coisas, basicamente começa o estrelato verdadeiramente dito com essa situação.
Delia tem sua origem política nos desígnios de Perón, nas ações populistas e populares que privilegiaram a classe dos trabalhadores. Sua história é basicamente associada a sindicatos, uma suposta luta anti-proletariado, federalista e pró-soberania Argentina. De Angeli é um produtor de soja transgênica, que entrou na atividade sindical rural em meados dos anos 90 e lutou contra os bancos que se apropriavam das terras de pequenos e médios produtores endividados com o difícil período que viviam (ele também no bolo).
Delia, no decorer dos anos, se tornou um profissional único e de extrema força política: o piqueteiro. Consiste em um homem capaz de mobilizar pessoas, com claro apoio governamental, elevar bandeiras, gritar em megafones, e falsificar uma manifestação de alguns indivíduos claramente azeitados de política em uma teórica manifestação popular e espontânea. E, isso, na base da força. Ele tem um histórico de violência e de associações com entidades violentas, conhecidas por defenderem seus "ideais" e bofetearem quem estão contra. Em seu currículo está, além de ter participado em alguns cargos do governo K, a invasão a uma delegacia de polícia no bairro do La Boca (exigiam justiça pela morte de um militante da FTV, Federación Tierra y Vivienda, um conjunto de grêmios de trabalhadores de vários setores e do qual era um dos líderes e atual presidente), invasão das terras de um magnata americano e acusação (que não provou e, por isso, Kirchner pediu pra ele se retirar de seu governo) de que os próprios judeus haviam armado o atentando ao prédio da AMIA Asociación Mutual Israelita Argentina), ocorrido em julho de 94 e que matou a 86 pessoas. Sempre com controvérsia, feridos e tijoladas envolvidas.
De Angeli , por sua vez, começou a despontar na época da crise de Fernando de La Rua, já treinando a modalidade "corte de estradas à distância", sendo um dos participantes ativos desse estilo em Gualeguaychú e, depois da ordem do ex-presidente de descer o pau nas manifestações, foi preso no confronto com policiais. Depois, em 2004, se meteu na luta contra o Uruguai e suas fábicas de celulose do outro lado do rio Gualeguaychú, de novo bloqueando estradas com protestos, dizendo que se tratava de um crime ambiental que afetava (e de fato afetava) fortemente a Argentina e convocando a todos à destruição (literal) das fábricas. Se tornou um dos líderes da Associação Ambiental da província e a justiça uruguaia até começou um processo para prendê-lo. Quando começou o "paro" do campo argentino, sendo Gualeyguachú o centro mais radical do manifesto rural, mas estando perto o suficiente da capital para incomodar, não era de se esperar que o líder dos "chacareros" locais aparecesse como voz quase onipresente do reclamo agropecuário. Pelo outro lado, Delia se consolidava como o líder piquetero dos Kirchner, um dos homens mais ativos do oficialismo, com incrível capacidade de mobilizar sua gente e verba para suas ações. Mas a Cristina estava tranquila e não precisava que a "defendessem nas ruas". Até o paro.
A aparente bagagem de choques e gritaria dos dois é só aparente. Delia é visto como um cara que se meteu com gente barra pesada. É constantemente associado a violência gerada pela incompreensão de diferenças. Fala de democracia, mas bate em quem não concorda. Defende a independência dos trabalhadores, mas se torna um aliado quase canino da oficialidade (dizendo que o kirchnerismo é anti-liberalismo e mostra a presença forte do Estado). Suas polêmicas , por mais que em algumas alguma razão tinha, sempre jogaram contra ele. De Angeli, pelo contrário, é visto como o famoso homem comum argentino, do povo, mais que isso, do campo, que aqui tem a imagem cristalizada como o setor que mais ajudou o país a sair da crise com sua dedicação e produção quase altruístas. Surgiu na luta contra bancos que queria desapropriar a gente da terra, se meteu na legítima luta ambiental por seu país e ajudou a expulsar La Rua da casa, mesmo contra seu último suspiro tirânico de mandar prender.
Delia é um homem grosso, mesmo, que fala atacando a qualquer um, com um toque de mafioso inegável no rosto, o inflamado-violento. De Angeli , embora passional, é o que inflama e chama a luta pela justiça como conceito, não para favorecer tal governo ou tal entidade. Não tem um dente (parece que agora visitou o odonto), cara rasgada de trabalhador mesmo, às vezes engasga ao tentar falar difícil, mas é inegável sua transparente espontaneidade e carisma. Delia vem acusando a imprensa de golpista, protagonizou uma cena dantesca (embora corajosa) ao xingar o que seria um william bonner aqui, em seu próprio programa, ao vivo, no auge da primeira parte da crise e ao vociferar ainda mais contra a empresa dona do Clarin e da TN (mais importantes veículos jornalisticos do país. Um impresso, outro tv) de mentirosa, safada e corrupta. Sua bronca com os meios de comunicação só pioraram nesses dias. Já não sobra pra ninguém. Em suma, ele é odiado pela imprensa. De Angeli , pelo contrário, está de forma ubíqua nos meios, responde a todos com sua cara de bolacha fofinha, não xinga ninguém, claramente fala o que pensa na hora e chama sempre pelo diálogo. Se Delia foi execrado publicamente ao ser pivô de uma agressão , da parte de sua galera da FTV , à população (essa, real) que foi à Praça de Maio no primeiro panelaço/cacerolazzo/buzinaço/assobiazzo da crise, De Angeli quase foi alçado a mártir ao ser preso há poucos dias pela polícia federal em meio a um protesto pacífico (num erro grosseiro de tática política do governo).
Embora haja muita coisa por trás dessa construção da imagem de um homem do campo de De Angeli, a conjuntura e o contraste com as ações políticas e armadas de Delia e Kirchners, apequenam possíveis contradições e articulações da Sociedade Rural e dele mesmo. Até deixa em menor grau os supostos atos violentos cometidos nas estradas contra policiais. Para o povo, é um pai de família que quer acabar com essa pendenga e voltar a capinar a sua sojinha em tranquilidade. Como disse um sociólogo essa semana na televisão, há um ar de guerra nos discursos. Parece que um lado tem que vencer o outro. E numa democracia isso não pode acontecer. Para exemplificar a separação desses dois personagens nesse ponto exato, Delia cria um neologismo transmoderno ao falar de "golpe econômico" e "defender o governo nas ruas", em tom claramente bélico, como se a discordância fosse intimidação. No mesmo dia, De Angelis, em entrevista longa a C5N, chama a senhora presidenta pelo nome, faz cara de cansado e diz que só quer o melhor para o país, que está todo ouvidos, que não quer nada com a Casa Rosada e que só precisa voltar a plantar suas coisas.
Para finalizar, não sei o que pensa os K sobre a presença de Delia em seus braços governistas. Ainda mais nessa época de confrontos e de tremendulência internacional. Fato é que ele traz mais pólvora e está se convertendo numa espécie de inimigo tanto para o povo, representado pelo campo, quanto pela classe média que apanhou de seus militantes e o vê como uma figura quase demoníaca e intransigente.
Cris "hermosa" Kirchner vai levar a patota toda pro congresso nacional, ou seja, a decisão sobre as taxas de retenção à produção agrícola , na mão dos deputados e senadores. Embora a discussão agora chegue nas mãos brancas dos lobbies, dos acertos e do trampolim eleitoral que se converteu a questão, ainda se falará muito de Delia e De Angelis. Dois homens que se tornaram rostos quase antagônicos de um mesmo debate e que mostram quantos modelos de rostos pode ter um país.
Hoje, quarta-feira, dia 18/6, o governo convocou uma manifestação de apoio a Cristinana Praça de Maio.
Delia estará à frente de tudo em suas vociferações anti-golpistas.
Não sei se por acaso, mas De Angelis, a essa hora, disse que estará rezando em alguma igreja pedindo por paz.
**** Uma história curiosa é que o Governo é acusado de começar uma ivnestigação contra De Angeli. Para achar algo em seu passado. O que seria um ás na manga virou uma piada sem graça para o oficialismo. É porque descobriram que, na época que estava sendo despejado de sua pequena fazenda por estar todo endividado, o líder do paro achou e devolveu uma maleta com um monte de dinheiro para um ricão de sua província. Perguntado pela oportunidade perdida de salvar sua terra da desapropriação, respondeu simplesmente: "o dinheiro não era meu". Mais um ponto na criação de um mito nacional.
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Um comentário:
o D'Elia representa tudo de mal que esse mundo piquetero oficialista tem. Suas declarações são passionais de mais e pouco embasadas, acho engraçado como ele continua sendo entrevistado depois de já ter falado tanta bosta.
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